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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O Estado do ICHF - Pérola Lannes

Uma nova edição da Folha chega à nossa universidade no momento em que ela está mais dinâmica: o início de um novo semestre, ainda que turbulento. Calouros ansiosos entrando na fila do bandejão como se não houvesse amanhã (até encararem o primeiro peixe, convenhamos), professores e alunos voltando à ativa, discutindo seus interesses, decidindo seus rumos depois de aproveitarem (ô!) suas duas semanas de férias. Lindo.
Se pensarmos em início de semestre já fica óbvio do que vamos reclamar nessa edição, IdUFF e cia., claro. Todos os alunos do ciclo básico da graduação em história com problemas no sistema – os que estão se candidatando às disciplinas que não são próprias do seu semestre e turno, então, nem se fala. O sistema diz que estamos excedentes, porque alguém configurou essas matérias para aceitarem 10 pessoas no máximo. Básico com 10 alunos, quem dera! Pode passar de 50, como todos sabem.

Ah, foi um erro de digitação? Ah, sim, claro, o IdUFF também é humano.
Bem, não sejamos rudes, claro, existe a possibilidade de que os responsáveis não tenham conseguido retificar essa pequena falha em tempo porque o sistema caiu, de repente é isso... Inclusive nós aqui da Folha lançamos mão das nossas credenciais oficiais de impressa e de uma destreza espetacular para conseguir carregar o IdUFF mais de uma vez por semana e recolher os dados necessários para essa seção.
É, foi. Porque a quantidade de vezes que o sistema esteve fora do ar ou extremamente lento durante o período de inscrição é quase comparável ao sistema da biblioteca – porque esse é hors concours, fui tentar acessar para escrever esse texto e continuam “preparando a ajuda para o novo catálogo online”... Ao fim dessa manutenção o sistema da BCG será o melhor do mundo.
E esse papo todo é só sobre a inscrição online. Tem muito pano pra manga. A integralização de currículo, criptografada para um observador menos atento; o lançamento das disciplinas de 2012.1 fora do prazo em mais de um caso; a carteirinha que demora séculos para chegar, não tem o número da matrícula, mas sim o da conta que você talvez queira abrir no Santander – esquisita essa história de amor, aliás, como também falamos no Editorial desta edição –; a Conexão UFF, a rede social dos nossos sonhos, em que as disciplinas desse semestre ainda não constam.
Isso tudo não pode ser erro de digitação. Será que toda burocracia pública é condenada à ineficiência? Será que falta investimento? Incentivo? Pessoal capacitado? Isso dá uma reportagem para outra edição, quem sabe... Porque ao contrário dos mosquitos ou da greve de ônibus, a questão do IdUFF é estrutural. Bem, talvez os mosquitos também, mas enfim.

O fato é que precisamos lutar pela melhora das nossas condições de estudo. Em minha opinião, sem transformar nossos problemas cotidianos em discussões sobre a questão da ajuda humanitária na Indochina. Imaginem se, cada vez que o IdUFF estiver fora do ar, cada estudante que tentasse acessá-lo mandasse um e-mail cobrando providências. É um meio de ação, assim como o movimento estudantil institucional. E qualquer um que disponha de cinco minutinhos pode fazer isso. Porque qualquer esforço é bem-vindo para manter essa universidade um exemplo de excelência, acho que nisso todos concordamos. E para lembrar a nós mesmos porque escolhemos e lutamos para estar aqui." ● 

Pérola Lannes é graduanda em História pela UFF.Gostaria de escrever para esta seção? Mande uma crônica ou peça de opinião que evidencie obstáculos que a estrutura do ICHF (ou da UFF) coloca à qualidade do ensino para afolhadogragoata@gmail.com

Carta -- Yuri Kestenberg

Na cozinha ela olhou para mim. Não sei porquê acompanhou-me até lá, fui pegar um pano qualquer para secar o chão que ela havia maculado, foi por compaixão ao nervosismo que explicava a minha hiperatividade, foi amizade a quem sempre vale prestar compania, foi dó do aio entristecido. Correndo à área de serviço, apressei-me em dizer:

- Não venha, por aqui o chão está molhado.

O que ela aceitou de bom grado, já me encontrava agachado. Com o pano na mão, debrucei-me sobre o tanque. Ela me dá ânsias, e lá consternei a própria face. Das duas uma: em um níquel de segundos desmascara-me, ou ao mesmo preço esvai o momento, deperdiça a moeda rogando um desejo sobre o meu ombro, e estatela-te no poço de líquida alma. Perturbações. Isso me dá ânsias.

Supondo a primeira hipótese e a transfigurando em opção, de lá olho pra baixo. Não tanto ao que se mire o ralo, o que seria muito desprezo, nem tão alto que mire a insolente bica, ao que pela cena já esvairia as forças.

- Sabes o que me deixa triste?

Ao passo que seu rosto branco revele uma comiserada surpresa, ela esperava que algo fosse dito, atiçava a vertigem do diálogo durante a curta estada branca cozinha, bem iluminada, uns restos de festa sobre a pia, uma certa distância com porta aberta.

- Dizes que é feia, quando não é, e afirmas ser burra sempre, sendo o extremo oposto. Desvalorizas-te por demais, vivendo ao lado do exemplo mór dum estouvado. Não aguento.

No que o leitor afirma piegas o rumo da história tomado, sinceramente, posso justificar-me. E que mesmo assim ria das minhas excusas diretas, excuso-me, e tento compreensão na própria folha, cuja gramatura serve de distância ao ridículo. Já acostumei ao ridículo, à real amizade da angústia, e o sobrolho sempre direcionou-se à desilusão, quando presente em calorosos beijos e abraços ao canto da sala, pode-se dizer até em rotina. Ordena o estômago de quem escreve para embrulho, que é o que real aconteceu.

A rebelião interna que levou às hemácias exigirem as primeiras palavras foi deveras algo incomum, ele não era dado a isso. Quieto, suportar a pancada sempre lhe conviu, um gemido quieto, pudicismo e ética fizeram escolher esse caminho durante a vida, e calejado todo já está. A pancada demora a doer. Dessa vez era demais.

- De todas as misérias – e aqui se emprega o feminino, que aparenta ser mais digno de misericórdia – essa é a única que me faz chorar. O meu pai me processar na Justiça, os meus irmãos passarem necessidade, à minha mãe faltar dinheiro, a magreza que me aflige, o futuro que mostra os dentes, os amigos que vão ao largo. Nada realmente me faz chorar, não menisca o límbico, a não ser você, e antes de tudo a tua desvalorização e a clara solidão à que você destranca a porta.

E ele chorou aquela noite.●


Yuri Kestenberg é graduando em Matemática Aplicada pela UFRJ

Renato Lessa: Filosofia Política: para quê?



Renato Lessa é professor titular do Departamento de Ciência Política da UFF, além de Investigador associado do ICS – Lisboa e presidente do Instituto Ciência Hoje. Tem diversas obras publicadas, entre as quais A Invenção Republicana (1988) e Presidencialismo de Animação (2006). É também coordenador do Laboratório de Estudos Humeanos da UFF e do Observatório de Países da Língua Portuguesa.

A “Política”, enquanto campo de conhecimento, mantém uma relação de identidade nominal com o objeto sobre o qual se debruça, qual seja, a política desprovida de aspas. Em termos diretos, trata-se, para o praticante da “Política”, de estudar a política, em uma convergência entre nome e coisa há muito estabelecida por Aristóteles, em duas de suas obras primas, a Política e a Ética a Nicômano, nas calendas gregas de tempos menos aziagos. Tal redundância confere à reflexão política – suspendamos agora as aspas – um lugar singular entre as disciplinas que, de uma forma canônica, compõem o conjunto das assim chamadas ciências sociais.

Com efeito, se nada proíbe a antropólogos e sociólogos o exercício de uma auto-observação profissional e sistemática a respeito de suas próprias disciplinas - materializadas em uma “Antropologia da Antropologia”, ou em uma “Sociologia da Sociologia” – é impossível afirmar que existam domínios, designados pelos termos “sociologia” e “antropologia”, que se imporiam como objetos obrigatórios a ser considerados pelas disciplinas que portam os mesmos nomes. Em suma, nestas áreas, nada há de semelhante à sentença que sustenta que “o objeto da ‘Política’ é a política”. Em termos mais diretos, nenhum antropólogo sustentará que a “Antropologia” define-se pelo estudo de algum objeto designado pelo termo antropologia, assim como seria assombroso encontrar sociólogo que defenda que a “Sociologia” o faça com relação a algo que se designe como sociologia. Já vi na vida coisas muito estranhas, mas não a tal ponto.

Ao considerar essas diferentes, digamos, disciplinas – Antropologia, Política e Sociologia – não tenho por meta estabelecer prioridades. Sei que as crenças profissionais dos praticantes destes campos incluem grande dose de etnocentrismo, vá lá, científico. Não sou praticante deste jogo, e reservo minha carga inevitável de etnocentrismo para outros assuntos. Meu argumento, neste pequeno ensaio, visa tão somente estabelecer distinções, e não hierarquias de relevância, com vistas a poder dizer duas ou três coisas a respeito das particularidades do conhecimento político.

Se algum juízo de vantagem puder ser afirmado, este parece favorecer antes a Antropologia e a Sociologia, e não a Política. A razão é simples. Por crer na identidade plena com seu objeto, a Política, enquanto campo reflexivo, dá como certa e indisputada a existência de objetos políticos que, por definição, caem sob sua jurisdição. Não é por outra razão que o “politólogo médio” tende a especializar-se no estudo das instituições políticas. Tal inclinação, menos do que natural, resulta de uma crença profissional: a de que politólogos estudam “objetos políticos”.

Nossos colegas antropólogos e sociólogos tendem a representar seus campos cognitivos mais como perspectivas de observação do que como domínios disciplinares, detentores de jurisdição preferencial sobre certos objetos. É mesmo o caso de ler – ou reler – a pequena obra prima de Peter Berger, Invitation to Sociology, sabiamente traduzida entre nós sob o título de Perspectivas Sociológicas (Petrópolis: Editora Vozes, 1976). Ali encontraremos, para além das razões da vocação específica do cientista social, a defesa da ideia de perspectiva, como parte inerente ao processo de conhecimento social. Isto significa dizer que qualquer objeto ou assunto pode, em princípio, ser enquadrado a partir de perspectivas sociológicas ou antropológicas, sem que os objetos desta, digamos, ação perspectivada sejam inerentemente “sociológicos” ou “antropológicos”. Que o diga o mais brilhante dos sociólogos portugueses contemporâneos, José Machado Pais, autor de pungente e inspirado estudo sociológico sobre a solidão, com base em observações de pet shops, lavanderias noturnas, bêbados, vagabundos, imigrantes e moribundos (ver Nos rastos da solidão: deambulações sociológicas, Porto: Ambar, 2006).

Os politólogos – e refiro-me aqui aos “politólogos médios” ou típicos, treinados nos laboratórios intensivos de institucionalismo e de mensuração – recusam tal ideia de perspectiva e aderem à crença de que há objetos políticos por natureza. Parlamentos, partidos, políticas públicas, eleições, entre outros, constituem seus objetos naturais. E não vai aqui qualquer juízo quanto à qualidade do que faz a “Política” – ou Ciência Política – orientada para estudos institucionais e muito menos quanto à relevância indisputada dos temas. Há excelentes trabalhos institucionalistas, de leitura recomendável e útil para o estudioso das ciências sociais e da história. O que aqui está em questão são as características do paradigma, e não a qualidade específica de pesquisas particulares. Um paradigma que, com frequência, reduz a riqueza e a variedade da vida social e da ação humana a “variáveis” estritamente políticas e institucionais e a cálculos estratégicos. Houve mesmo, por exemplo e para citar um paroxismo, quem interpretasse o desastre brasileiro de 1964, com a queda de João Goulart, como decorrente de uma crise no interior do parlamento.

A desvantagem do conhecimento político, no que diz respeito à naturalização de seus objetos, possui, no entanto, fortes compensações. A principal é a da natureza normativa – isto é, prescritiva ou propositiva – desta forma de conhecimento. Mesmo politólogos mais aderidos à cultura intelectual da positividade científica, e do respeito contrito à vida como ela é, não escapam do abismo da prescrição. Não há, por exemplo, especialista em sistemas eleitorais que não tenha o “seu”, aquele de sua predileção. Eu mesmo, quando frequentei este campo, andei a tecer loas ao sistema eleitoral praticado na República da Irlanda e na Câmara Alta da Tasmânia! Cheguei mesmo a argumentar das vantagens de sua adoção no Brasil. Tal grau de voluntarismo opinativo não será encontrado, por exemplo, entre etnólogos que se ocupam da análise de sistemas de parentesco em sociedades “tradicionais” ou “primitivas”, tal como se dizia antigamente. Não conheço nenhum especialista em sistemas de parentesco que tenha iniciado movimentos de reforma das relações de parentesco, nas sociedades por ele estudadas. Imaginem só, a bela proposta que disto resultaria: “sugiro alterar o fundamento matrilinear da sociedade Canela, com a correspondente adoção das regras patrilineares dos Mundukuru”. Seria uma bela peça de humor, mas, de certeza, péssima Antropologia.

Como explicar e – o que é mais interessante – justificar o componente normativo do conhecimento político? A resposta exige menção a outro traço distintivo da Política – como campo reflexivo – com relação às demais Ciências Sociais. Enquanto a Antropologia e a Sociologia são de extração recente, ou seja, começam a constituir-se a partir de meados do século XIX, a “Política” resulta de um movimento reflexivo contemporâneo à invenção da política como atividade humana. Em outros tempos, pensamento político e ação política foram, em sua origem, expressões culturais de um experimento – ocorrido entre os gregos durante o século V anterior à Era Comum – marcado pelo estabelecimento de uma distinção entre Physis – Natureza – e Nomos – regra ou lei. Tal distinção é crucial para o estabelecimento de um âmbito político, no qual a ação humana “faz diferença”, ao contrário dos desígnios da Natureza, sobre os quais tal ação não é “causa eficiente” ou motora.

Tal distinção foi posta inicialmente pela filosofia desenvolvida pelos sofistas, tal como depreendemos do que restou de pensadores tais como Protágoras, Górgias e Antifonte. Mas encontraremos tal oposição, de forma inequívoca e direta, em Aristóteles, em vários aspectos um “inimigo” dos sofistas. É o que pode ser depreendido de sua definição – posta na Ética a Nicômaco, uma obra-prima do engenho humano – da ideia de deliberação como atividade humana que incide sobre assuntos incertos e cujos efeitos são indeterminados. Não é acidental que o tema da deliberação tenha sido central para a democracia ateniense: ali tratava-se de decidir sobre assuntos que não são estabelecidos por forças naturais, mas pelo engenho humano da política.

Política, nesta chave originária, significa deliberar e decidir, de modo coletivo, a respeito de questões de interesse público. É impossível imaginar que deliberações possam dispensar reflexão a respeito do que se está a deliberar. Pois bem, é justamente tal reflexão, inerente ao exercício da deliberação, que se apresenta como constitutiva de um hábito de pensamento – a “Política” – cuja constituição é simultânea à invenção de seu objeto – a política. Como se pode ver, trata-se de matéria muito antiga e, por isso mesmo, sujeita a inúmeras ressignificações ao longo do tempo. Hoje o que retemos desta forma originária da política – como prática humana – é, na melhor das hipóteses, residual. Mas, por outro lado, há uma característica da “Política” que se mantém, e que é condição mesma para a sua consistência: a combinação entre realismo – ou seja, esforços cognitivos para considerar o que se passa na vida política – e alucinação – ou seja, a imagem de como o mundo poderia ou deveria ser.

Temo suscitar entre os mais prudentes algum dissabor, ao sustentar que na oposição entre realismo e alucinação é a segunda faculdade do espírito humano que comanda a primeira, e não o contrário. Em outros termos, os gregos, quando deliberavam em suas assembleias, cuidavam de duas dimensões distintas, porém combinadas, da política. Ao mesmo tempo em que discutiam “o que fazer”, com as implicações práticas que disto decorrem, tratavam de deliberar a respeito do “por que” ou “para que” fazer, o que implicava em incluir no campo da reflexão política questões absolutamente cruciais, hoje um tanto perdidas de vista, dados os hábitos mentais cientificistas que vigoram: que sociedade queremos? O que é uma vida boa? O que é o justo? Como vemos, tais questões vinculam a “Política” ao campo maior da Filosofia, o que justifica dizer que o conhecimento politico é “filosofia política”. Esta tem sido, ao longo dos séculos, abrigo de esforços de entendimento daquilo que se passa no mundo da vida como ela é; esforços orientados por crenças em desenhos de mundos possíveis e imaginados.

A filosofia política ocupa-se do campo do possível – ou de universos possíveis - e este é, por definição, mais – muito mais – amplo do que o universo finito da nossa experiência prática. Em grande medida, são os efeitos deste infinito em nós que nos orientam para lidar com os dilemas da nossa inapelável finitude. Bem disse, certa altura, o cineasta e ensaísta alemão Alexander Kluge: para sermos realistas, devemos ser irrealistas. Disse-o no século XX. Muito antes dele, Jean-Jacques Rousseau falou-nos de uma igualdade originária e natural que, segundo ele próprio, jamais existiu, não existe e não existirá, mas que, a despeito disto, dela é imperativo ter uma noção precisa para melhor avaliarmos nossa condição presente.

É mesmo espantoso: ter uma noção precisa a respeito de algo que não existe, para que melhor compreendamos o que existe. Ninguém melhor do que Rousseau – em seu magnífico Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade humana, de 1754 - fixou a ideia de que sem a ajuda da alucinação, não há conhecimento possível do mundo. Ponto para Kluge e para Rousseau, mas nada melhor do que a precisão poética de Paul Valéry para tornar o argumento ainda mais aliciante: o que seria de nós sem o socorro do que não existe? ●

Lília Schwarcz: O passado como lembrança e esquecimento

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo. É autora de diversos livros, como O Espetáculo das Raças (1993) e D. João Carioca: A Corte Portuguesa Chega ao Brasil (2008), entre outros. Atualmente, é a Princeton Global Scholar. 

Nos relatos de finais do XIX a memória ou desmemória da escravidão é tema constante. Nada como lembrar do Hino da República, criado em 1890, portanto dois anos após a abolição da escravidão, e que entoava solene: “Nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país”! A escravidão mal havia acabado e já era objeto do passado remoto; do “outro”.

Essa característica de jogar para o “outro”, seja na história, no tempo, na geografia simbólica ou na situação social o prejuízo “da escravidão e do racismo” é característica recorrente, persistente, de um certo modelo brasileiro de pensar o tema racial. A condição de “outro” faz parte de uma série de relatos nacionais que justificam o caráter inclusivo da experiência brasileira.

Joaquim Nabuco, por exemplo, deixou em seu conhecido texto “Massangana”, páginas memoráveis nesse sentido, mostrando o que chamou de “saudade do escravo”; saudade melancólica de um “ethos de pretos dadivosos”, que agradeciam ao ato da abolição como quem mostra-se para sempre fiel ao presente e à pessoa do presente. E aí vai a dialética do escravo, pensada em termos tropicais.

“Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela.”

A lembrança da escravidão ficava assim guardada num canto escuro da memória; tanto que a morte da madrinha aparece como uma “cortina preta que separa do resto de minha vida a cena de minha infância”. Nabuco tinha oito anos na memória e seu mundo estava prestes a mudar. O pai o mandaria buscar e o menino rumaria para o Rio de Janeiro. É como se o tabu se transformasse em totem, mito de amor e de política.

Uma boa escravidão (por oposição à norte-americana), bons proprietários e escravos dadivosos era mais que um exemplo isolado, mas um modelo que seria seguido a risca por Gilberto Freyre nos anos 30 e faria escola. Eis um lado (igualmente verdadeiro da equação brasileira): inclusão social definida pela afeição e pela cultura, entendida como traços compartilhados na cultura.

Com nove anos de distância, Lima Barreto também usaria da memória para falar e repensar o presente. O escritor tinha 9 anos, mas é como adulto que relembra uma passagem na escola:“Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição, foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua injustiça originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! (...) São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar. Quanta ambição ele não mata. Primeiro são os sonhos de posição, os meus saudosos; ele corre e, aos poucos, a gente vai descendo de Ministro a amanuense; depois são os de Amor – oh! como se desce nestes! ... Viagens, obras, satisfações, glórias, tudo se esvai, e esbate com ele. A gente julga que vai sair Shakespeare e sai Mal das Vinhas; mas tenazmente ficamos a viver, esperando, esperando... O que? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe se a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?” [1].

O relato não parece ter escrito para ser lembrado ou legado para a posteridade (diferente de Massangana). Aliás, foi deixado nas costas de um papel do Ministério da Guerra; local em que Lima atuava como Amanuense. O escritor nunca escondeu suas antipatias para com a profissão e usava do tempo livre para se dedicar à literatura: crônicas, contos, novelas. O tom é, porém, diferente do anterior. Ambos carregam certa nostalgia, mas se um fala com saudades de um tempo que não existe mais – apagado pela pátina do tempo – já o segundo é marcado por certo pessimismo. O tempo passado não era.

Diverso de um certo “preconceito retroativo”, presente no texto de Nabuco, nesse caso o modelo é o da exclusão social. O tempo que não foi, que, na verdade, não existiu. A abolição que não foi; a república cujo sonho foi curto. Temos aqui pois, o contrário do contrário que resulta em semelhante. Nabuco, ao valorizar a escravidão brasileira, desfralda todo o racismo da elite nacional. Lima, ao temer pela sorte dos seus desfigura a importância de certas sociabilidade brancas para a sua formação. Não há pois preto no branco; ou mero efeito de contraste.








[1] BARRETO, Lima, escritor e jornalista. O traidor. [S.l.], [19__]. Orig. Ms. 10 f. FBN/Mss I-06,35,0964. Fundo/Coleção Lima Barreto.

Editorial - Da arbitrariedade universitária

Apesar de estudarmos em uma universidade pública, não raro somos surpreendidos por decisões administrativas, de mérito para lá de discutível, tomadas sem nenhuma discussão com a comunidade acadêmica. Exemplo máximo disso é o projeto de transformar o Gragoatá numa versão reduzida do Fundão, com carros passeando livremente por dentro do campus. Se é difícil escutar aulas por causa das obras, com caminhões e carros particulares a coisa certamente não ficaria menor.
Felizmente a reitoria voltou atrás, não sem antes ter de encarar uma ocupação de seu prédio no Ingá. De quebra, ainda teve de conversar sobre diversas outras reivindicações antigas dos estudantes, como a construção de outro bandejão. Como será que vão as obras?
As vias Orla e 100 estão longe, infelizmente, de serem as únicas medidas recentes bizarras da reitoria. Ano passado, através do email @id.uff.br, pelo qual recorrentemente somos alvo de propaganda institucional (que incluem avisos sobre a semana de prevenção ao ataque cardíaco e um parabéns pelo dia dos professores), fomos informados sobre uma nova carteirinha de estudantes da UFF. Teríamos inúmeras vantagens: a carteirinha poderia ser usada como cartão de débito (com desconto em negócios perto dos campi) e Vale Transporte, além de, claro, carteira de estudante.
O que recebemos, no final do semestre passado, foi um cartão do Santander (já com seu potencial número) que tem, por acaso, nosso nome e uma foto mal impressa. Para ser justo, há também o nome do curso, mas, ilustrativamente, em várias não há o número de matrícula. Para habilitar a função Vale Transporte, é necessário desabilitar qualquer Bilhete Único ou semelhante já cadastrado pelo CPF do aluno. Qualquer um que já usou o site do Riocard sabe que isso é equivalente a dizer que não é possível usar a Função Vale transporte.
Por que nosso cartão da UFF virou um cartão de débito do Santander? Como foi o processo de licitação? O que a universidade ganhou com isso? Para onde foi o dinheiro do convênio? Será que a biblioteca terá mais dinheiro para fazer aquisição de livros? Será que o os banheiros masculinos do Bloco N não vão feder mais nem ser hábitats de colônias de mosquinhas?●

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eu não funciono -- Isabel Falcão

Eu não funciono. A culpa não é minha. Eu sofro com isso mais do que você, acredite, eu só estou mais conformada. Eu não funciono, nunca funcionei, o jeito é conviver com isso. Eu já tentei mudar por você, meu bem - tudo por você - mas é difícil, eu dou defeito, eu nasci assim, a culpa não é minha. Tudo o que eu errei, tudo o que eu gritei, tudo o que eu chorei, pode chamar de maluquice, pode chamar de drama, pode chamar de distúrbio psicológico, mas é tolice, meu bem, porque é tudo erro de funcionamento. Não se pode esperar de um pato que ele seja outra coisa que não um pato, como não se pode esperar de uma pessoa que claramente não funciona que se comporte como se funcionasse normalmente. É tolice, meu bem, esperar qualquer coisa de mim. Se em vez de juízo me faltasse um dedo você não ia esperar que um dedo subitamente surgisse na minha mão, então também não espere nada igualmente esdrúxulo do meu juízo. Eu nasci sem ele, é defeito de fabricação. Todo mundo tem defeito. Até mesmo os sábios, até mesmo os reis, até mesmo os papas tem defeito, até mesmo as mães, até mesmo aquela sua ex-namorada que lia Baudelaire. Mais do que comum, eu diria até que é condição necessária da existência humana. E eu bem te avisei. Cuidado, eu não funciono, eu falei. Você escolheu se envolver comigo ciente de tudo isso. Não, meu bem, a culpa não é sua. Fui eu que fiz pouco. Talvez eu devesse ter arranjado uma placa como essas que colocam em máquinas de refrigerante quebradas, uma dessas com os dizeres "FORA DE FUNCIONAMENTO". É uma questão de respeito por parte das máquinas para com os seus usuários, elas deixam bem claro, eu podia ter tomado esse cuidado. Mas eu vou melhorar, você vai ver. Você vai ficar orgulhoso de mim. "Eu não funciono", vai dizer a minha placa. Há de ser o suficiente, não? Tudo isso por causa de um probleminha que eu não posso resolver. Não é preguiça minha, é uma questão de lógica: eu não funciono, não é querer demais que além de existir eu ainda saia por aí resolvendo problemas? Não é que eu não esteja disposta a tentar, veja bem. Ainda temos opções. Terapia, religião, medicina, exorcismo, macumba, vodu, feitiçaria, eu estou aberta a tudo isso. Teve até uma vez que me contaram uma história sobre um senhor que não funcionava, assim, que nem eu, foi para um internato (parece que era na Suécia) e voltou bonzinho. Eu sei, parece mentira, mas não custa tentar. Eu posso fazer isso por você, eu vou para a Suécia, e se o tratamento não funcionar pelo menos eu conheci um país novo, eu posso fazer isso por você, é tudo por você. Não, não é pressão, não é responsabilidade nenhuma, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu nasci assim, eu não funciono, nunca funcionei. E se nada der certo, se eu nunca funcionar e se eu for assim pra sempre, eu te peço tão pouco, meu bem, é só de um pouquinho de paciência que eu preciso. Dispense as pérolas, os diamantes, os anéis de compromisso. Pode dispensar os vestidos, as viagens e as promessas de amor eterno. Tudo o que eu preciso é de um pouquinho de paciência, só um pouquinho, eu peço tão pouco. Eu sei, é complicado, eu sei, eu sou toda errada, mas meu pedido é tão pequenininho e existem coisas tão grandes no mundo, existe a Muralha da China e também o oceano e existe a infinitude do universo, compara com tudo isso, olha como eu te peço pouco. E o nosso amor, meu bem, o nosso amor é infinito como o universo e tudo o que eu te peço é um pouquinho de paciência, só um pouquinho. Porque se você for embora, se você desistir de mim, eu não funciono, não vai dar, eu não vou conseguir sozinha. Não é pressão nenhuma, meu bem, eu sempre quis que você fosse livre, mas se você for embora, aí eu nunca mais vou funcionar, aí eu vou pifar pra sempre, e eu vou ter que comprar uma arma, meu bem, esta sim, funcionando perfeitamente, e eu vou direcionar virada para mim, sem querer te pressionar, meu bem, eu vou direcionar direitinho, não é culpa sua, mas também não é culpa minha, eu não funciono, eu vou direcionar a arma e eu vou ter que atirar, e aí meu corpo também vai parar de funcionar, minha mente vai parar de funcionar, e quando finalmente o meu coração parar de funcionar, por favor, meu bem, eu só peço um pouquinho de paciência comigo, não é culpa minha, eu não func ●

Isabel Falcão é graduanda em Letras pela PUC

Trabalho em suspenso, oficina do diálogo -- Paula Justen

Fim de greve, a vida voltando aos seus eixos. Quatro longos meses de tensão e expectativa de volta iminente às aulas, sem saber quando o drama dos trabalhos deixados para depois ia finalmente explodir.

Quatro meses de militância. Há anos não se via um movimento grevista tão forte e com tanta adesão. Tapa na cara de quem diz que greve não cabe à universidade. Mesmo para aqueles que não foram com freqüência às ruas, não foram meses de corpo mole, meras férias de tempo indeterminado. Era árdua a tarefa convencer os familiares, amigos e quem mais aparecesse para falar sobre a greve de que a causa era, sim, justa e que a greve era, sim, necessária. Que eu não me importava de ter que ter aula enquanto todos estivessem de férias. Que a luta era maior que os meus planos de viagem no verão. Explicar com paciência o porquê da greve, mesmo diante dos olhares de pena de quem só pensa que professor é vagabundo e não quer trabalhar. Cansa, mas paciência é uma virtude, principalmente quando se quer argumentar e convencer.

A cada universidade que aderia, um grito de vitória. Mais um mês sem aula e o governo sem dar sinal. Manifestações, até protesto em Brasília. Quem disse que o movimento estudantil morreu? Mas nada. Dilma conhece sindicatos, os grevistas, sabe como uma greve funciona. Decidiu ganhar da forma mais covarde e simbólica: pelo cansaço.

Lá pelo segundo mês, o furor das adesões foi dissipando. A greve preocupa, e muito, mas a falta de resposta do outro lado desanima. E todo mundo se dá conta de que ela iria durar. Com o final ao longe, a gente se permite a muitas coisas. Ao tédio, para começar. Já não há clima para estudo, todas as promessas de terminar os trabalhos o quanto antes são como resoluções de Ano Novo. Não, hoje eu vou ler aquele capí... – haha, tem aquele episódio de Friends que o Joe tenta falar francês... É, acho que vou rever a temporada inteira... Ops.

E tem o ponto de saturação. A greve dura demais. Momento perigoso. Ninguém agüenta mais ficar em casa, nessa vida em suspenso, nessa indefinição que agonia (e dá fome. Muita fome). Até agora só os estudantes e professores se prejudicavam, o governo mantinha a indiferença absoluta. Valia a pena manter a luta quando o nosso alvo simplesmente nos esnobava como meras moscas, tentando tirar a legitimidade do movimento nos tratando como irrelevantes...? Peraí. Hora de botar os pingos nos ii. A duração da greve não era culpa dos grevistas, mas da ilustre presidenta que se recusava a negociar.

O triste era ter que se obrigar a lembrar disso o tempo todo.

Mais um mês. Dona Dilma não cede. No fundo, todo mundo já sabia que era o fim. Para alguém que governa o país como uma empresária, buscando sempre o desenvolvimento do país através de números, a greve é só um mero estorvo. Dane-se se é uma reivindicação de classe, dane-se se o povo tem necessidades. O país deve crescer, não há tempo para greve. Corta-se o mal pela raiz: afinal, o mal nem existe, o governo já negociara com o sindicato. Legítimo ou não, isso é outra história.

Mas a greve tem que ser levada até o fim. Questão moral, não se pode desistir sem ter nenhum ganho real. Questão de orgulho. O gosto da derrota é amargo demais para se admitir que nada mais saía da Dama de Ferro. O ponto final já estava dado, mas o movimento insistia em reticências, até não dar mais.

Falei derrota, mas peço perdão. A verdade é que toda mobilização em si já é uma vitória. A greve foi discutida em um nível que nunca houve antes, e se nenhuma reivindicação foi ouvida, é caso para se pensar em que tipo de governo está sendo feito no país atualmente. Um governo macro-negócio, ao invés de um governo humano. A greve em si já é uma vitória por tirar do marasmo e da zona de conforto, sair do lugar comum. A greve é por excelência um espaço de discussão e reflexão, muito maior e mais dinâmico do que a nossa Academia em vão se acha.

Que o verão tenha piedade de nós. ●

Paula Justen é graduanda em História pela UFF

Do tempo ao vento -- Diego Ferreira

Eirá estreitura rebatetevento
dentro a fim da lousa escura
sabes como estás por dentro
dentro do abismo afunda
afundas sem argumento
intento, vendo, acento de magistratura
veja como flui o vento
aprouve quem te abate assim
fazerte dentro do peito aberto
choras, lava alma abrupta
aguarde que já não me não ausento
impeto de alma afunda outrora
clareia luzes ao passaro tempo
mas como fazernos alvo, sagas versura?
Respostas virão, do tempo ao vento.●


Diego Ferreira é graduando em História pela UFF

O Estado do ICHF - Pedro Castro


Passamos a terça-feira do dia dez de abril distribuindo a última edição da Folhado Gragoatá, cem exemplares para os alunos do ICHF. Mal essa coluna estreava, já deveríamos saber sobre o que escrever na próxima, e inspiração é o que não falta, sempre há um bom motivo pra escrever. Na verdade, foi até fácil, subimos as escada, pois a dama de ferro do segundo andar não é muito fã de atrasos e assistimos aula como bons alunos. Saldo do dia? Duas horas de aula, uns vinte alunos e o dobro em mosquitos. Quem tem frequentado o bloco N sabe que ele tem vivido infestado deles. Para os alunos, cabe escolher entre usar tênis e calça comprida em um calor de mais de trinta graus ou gastar o suado dinheiro do nosso trabalho estagiário intensivo em repelente; aliás, caso alguém veja um aluno chacoalhando pelo campos, beirando um ataque epilético, esse sou eu, é a minha escolha pessoal para evitar os borrachudos.Os malditos artrópodes voadores vão continuar por um tempo; podem ter vindo do mato cortado pela obra, ou ser simplesmente uma coisa de época, o que é engraçado,porque no verão todo mundo veste essa camisa de Rio contra a dengue, mas o nosso bloco é uma ilha, aqui a gente vai aproveitando a nossa própria versão da invasão dos pássaros do Hitchcock, só que no nosso caso não são pássaros, não é filme e não interessa a ninguém.●

Pedro Castro é graduando em História pela UFF. Gostaria de escrever para esta seção? Mande uma crônica ou peça de opinião que evidencie obstáculos que a estrutura do ICHF coloca à qualidade do ensino para afolhadogragoata@gmail.com

Córrego -- Tainá Telles


"Sinto um devir tão grande e intenso para todos os cantos, por volta de mim. Sinto em minha pele o contato suave e sutil do tempo que passa, uma brisa leve quase imperceptível – estava lá mas já se foi. O toque não é forte o suficiente para decidir os rumos por mim. A cada movimento que faço, até mesmo sem notar, destino a brisa suave do vento por um caminho. A cada mudança de postura faço desaguar dali há muito tempo algo diferente do que havia planejado.
É o devir de mim, que eu mesma me guio sem saber (como me guiar?, não sei para onde quero ir). E me toca a pele toda o tempo inteiro, me arrepia o tempo que corre e a todo instante pergunta: para onde, para onde? É um tempo sem dó de mim que nada sei, que nada quero, que tão pouco pretendo – é só saber.
Passa, escorre, deságua: para onde?"●

Tainá Telles é graduanda em História pela UFF

Ronaldo Vainfas: Reconstrucionismo, historicismo ou neo-historicismo?



Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense. É autor de Trópico dos Pecados (1989) e Jerusalém Colonial (2010), entre outros livros. Recentemente, organizou, junto ao prof. Ciro F. Cardoso, o volume Novos Domínios da História. Neste artigo, ele continua debate que ocorreu durante a última Semana de História da UFF.


Esta pergunta vem a propósito do modelo que Ciro Cardoso expôs na introdução de Novos Domínios da História, livro que organizamos para a Campus em 2011. Como não pude comparecer ao debate da Semana de História, organizada pelos alunos da UFF, vou dizer duas ou três palavras sobre o assunto, baseado no que escrevi na conclusão do livro.

Ciro Cardoso apresenta três modalidades possíveis da epistemologia histórica: (1) o reconstrucionismo, entendido como a reconstrução do passado a partir das evidências factuais, de maneira indutiva, de modo a alcançá-lo na sua feição a mais verdadeira possível; (2) o construcionismo, que atribui ao sujeito historiador o papel de produzir um conhecimento acerca do passado, sempre à luz do presente e a partir de hipóteses hipotético-dedutivas; (3) o desconstrucionismo, que desloca o foco para as estruturas discursivas, consideradas como a única ou a principal matéria de estudo, do que resulta a sub-valorização, ou mesmo eliminação, das realidades históricas.

Trata-se de um texto no qual Ciro atenua bastante suas críticas à chamada Nova História, presentes no texto Uma Nova História? (1988) e História e paradigmas rivais (1997). Em ambos, sobretudo no primeiro, a NH é vista como expressão da fragmentação do conhecimento histórico, em oposição a uma história totalizante e racionalista, inspirada no marxismo e/ou na primeira geração dos Annales (Bloch, Febvre, Braudel).

No texto de 2011, Ciro mantém o foco neste embate de paradigmas rivais, porém retira a Nova Historia Cultural do campo irracionalista para colocá-la “com um pé em cada mundo”, entre o construcionismo racionalista e o reconstrucionismo à moda de Foucault ou Hayden White. Além disso, reconhece, com razão, que o discursivismo que conduz à desconstrução da história não rendeu grande coisa em termos historiográficos.

Parto deste último ponto para acrescentar que o debate sobre paradigmas rivais, que tanto avivou o meio historiográfico nas últimas décadas, talvez não exprima o que tem ocorrido de essencial na pesquisa histórica nos últimos tempos. Refiro-me à crescente diversidade de fontes e consequente especialização das metodologias de investigação. Neste sentido, aquele debate me parece antes de tudo retórico e descolado da prática de pesquisa.

Se assim é, vale a pena reconsiderar a importância do chamado reconstrucionismo, que muitos autores (Ciro inclusive) confinam na historiografia oitocentista, basicamente nos estudos inspirados pelo historicismo. O livro Novos Domínios da História expõe, com relativa abrangência, a renovação dos campos de pesquisa, sugerindo uma preocupação cada vez maior com o tratamento das evidências factuais. Mais que isso, a produção historiográfica dos últimos 50 anos, a despeito das polêmicas sobre “crise de paradigmas”, tem revalorizado as evidências documentais como matéria essencial do trabalho historiográfico. Até mesmo o evento singular é, por vezes, tomado como ponto de partida de várias pesquisas que, partindo da desconstrução (aí sim) de memórias, buscam alcançar a história. Os estudos sobre o Tempo Presente dão excelente exemplo desta tendência.

Nesse sentido, penso que, se o reconstrucionismo chegou a perder força ao longo do século XX, renasceu com ânimo revigorado nas últimas décadas. Dito de outro modo, o “paradigma rival” do construcionismo encontra-se menos no “discursivismo” do que em um historicismo de fôlego renovado. Um historicismo revigorado pela problematização dos objetos e cioso da reconstituição empírica das realidades históricas. Não por acaso, há quem qualifique (criticamente) boa parte da historiografia contemporânea como neo-historicista, apontando seu demasiado apego à pesquisa arquivística e a metodologias específicas para a análise das fontes.

Eis um ponto que merece reflexão. O que parece estar em crise faz tempo é o método hipotético-dedutivo: um modelo que aposta em um conhecimento historico derivado de conceitos ou hipóteses, no qual a evidência factual fica relegada à função demonstrativa de teorias. Por constraste, a pesquisa histórica contemporânea tem apostado cada vez mais no conhecimento indutivo, no diálogo entre o historiador e suas fontes. Neo-historicismo? Talvez. Mas é como escreveu Carlo Ginzburg acerca do “método indiciário”: a história não é ciência “galileana”, senão ciência das particularidades.●

Daniel Aarão Reis: A Comissão da Verdade será de mentirinha?





Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense. É autor de De Volta à Estação Finlândia (1993) e Imagens da Revolução Russa (2006), entre outros títulos. Durante a ditadura militar, militou no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).

Aprovada há cerca de seis meses, a Comissão da Verdade foi, afinal, constituída. Menos mal. A ânsia de obter um amplo consenso esteve, certamente, na raiz de uma protelação que já se eternizava. A Comissão vai ter que lidar com suas condições: a quase total dependência à Presidência da República, os poderes mais do que limitados (não pode convocar ninguém, apenas convidar), os limites orçamentários – estreitos – e a amplitude de seu escopo – demasiadamente largo.

Tudo isto conduz a um certo ceticismo quanto à possível eficácia da Comissão. No entanto, não quer dizer que sua atuação será necessariamente nula. Vai depender de como a sociedade irá encará-la, como se disporá a se mobilizar em torno dos temas sujeitos à apreciação.

Recentemente, surgiu um movimento interessante e que provocou bastante barulho. Tentando trazer para aqui o exemplo dos “escrachos” argentinos, grupos de jovens – contando também com a presença de alguns velhinhos – foram às casas onde moram torturadores com o objetivo de denunciá-los à sociedade e de escrachá-los, ou seja, esculachá-los. Os militantes também atormentaram militares da reserva – inclusive alguns torturadores notórios -, que se reuniram no Clube Militar para uma sessão-nostalgia a respeito dos “velhos bons tempos” da ditadura civil-militar, instaurada em março de 1964.

A agitação foi um sucesso. Atraiu atenção e suscitou inúmeras discussões, sobretudo em escolas e universidades.

Trata-se, agora, de manter o ritmo das agitações e dos debates. Os torturadores devem contas à sociedade. Não podem escapar de julgamento, porque os crimes que cometeram são imprescritíveis, segundo tratados internacionais assinados pelo Brasil e que não podem ser ignorados, apesar da decisão conciliadora do Supremo Tribunal Federal.

Entretanto, eles não deveriam ser apontados como “bodes expiatórios”. A rigor, aplicaram uma política de Estado – a da tortura sistemática de todos os opositores considerados radicais. Assim, devem ser também responsabilizados os altos mandos que autorizaram a tortura e cobriram com seu manto a ação dos torturadores. E, finalmente, mas não menos importante, também deve ser questionada a tortura como tradição, aceita e naturalizada por amplos segmentos da população brasileira. Afinal, a tortura não começou a ser praticada com a ditadura mais recente, nem terminou com ela.

Enquanto a sociedade não estiver disposta a discutir, em profundidade, estas questões, não terá condições de superar a infame prática.

Não seria o caso de pressionar a Comissão da Verdade para conduzir os seus debates nestes termos? Se o fizesse, estaria contribuindo positivamente para o enfrentamento desta chaga que faz do Brasil um país de torturados e de torturadores. ●

Editorial – Fim da greve e nossa pretensão

Passou a greve, e voltamos. Apesar de apoiarmos a iniciativa de vários colegas em não permitir o esvaziamento da universidade durante a paralisação, com palestras e debates, decidimos interromper a publicação normal da Folha durante este período. Não tínhamos acesso à infraestrutura necessária para a publicação e, mais importante, achamos que o clima que havia na universidade durante os três meses de greve não era exatamente o mais propício para seguir as discussões que gostaríamos de levantar em nossas edições normais.

Por isso mesmo, elaboramos em junho uma edição especial de greve. Temos a pretensão de fazer parte da vida normal do ICHF – sendo assim, não poderíamos nos abster de procurar levar a nossos leitores pontos de vista sobre o movimento que afetou de forma tão profunda nossa vida como alunos.

Agora voltamos à vida normal. Tínhamos a presente edição pronta desde maio: por isso alguns assuntos, como a formação Comissão da Verdade (que data de maio), e as revoadas de mosquito que aparecem anualmente no Gragoatá (a última também foi em maio) figuram tão proeminentemente entre os artigos. Não achamos que estes assuntos caducaram; as discussões que introduzimos ou continuamos aqui estão tão vivas quanto antes, e os mosquitos não tardam em voltar.

Somos realmente pretensiosos. Prova disso é nossa mudança de formato. Resolvemos deixar de ser apenas a folhinha do Gragoatá para tornarmo-nos de fato uma Folha do Gragoatá, com um espaço respeitável. Vamos preenchendo-o, aos poucos: nesta edição temos dois artigos interessantes de intelectuais discutindo assuntos dos quais fazem parte.

Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da UFF, participou ativamente da luta contra a ditadura militar de 1964. Hoje ele nos traz sua opinião sobre a quantas anda (ou andava, em maio) a Comissão da Verdade –órgão criado pelo governo federal para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas” no período da ditadura (na verdade, uma lei complementar coloca o período sobre o qual se debruçará a Comissão como desde 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição de 1988).

Já Ronaldo Vainfas, professor de História Moderna em nossa universidade, nos insere no cerne de um debate que tem movido o departamento de História. Respondendo a um posicionamento do professor Ciro F. Cardoso, ele argumenta a favor do que chama de reconstrucionismo, defendendo que, ao contrário do que diz Cardoso, uma maior valorização de evidências documentais não é algo que está preso na historiografia do século XIX. O que torna esta discussão ainda mais interessante é o fato destes dois historiadores terem recentemente organizado, juntos, Novos Domínios da História, livro de metodologia que busca atualizar o mapeamento das principais posições historiográficas de hoje (este volume surge como uma continuação de Domínios da História, publicado em 1997).

A partir desta edição, decidimos abrir um pouco mais nosso leque de contribuidores. Pensamos: somos um jornal que visa, em alguma medida, a atender anseios literário-intelectuais ICHFianos (ok, talvez sejamos um pouco petulantes). Interessa-nos ler estudantes de Letras. Interessa-nos ler poesias de alunos de Ciências Sociais. E por que não um conto, quase sonho, de um aluno de matemática (na próxima edição)?●

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Estado do ICHF em greve: Dia de um ex-indeciso - Romulo Braga

Por Romulo Braga (estudante de História na UFF)


Acordei um pouco consternado. Não sei se mais pela ingenuidade de não ter lido todo o texto referente à aula de hoje ou por saber que iria à uma aula durante uma greve de professores. Mas nada que se assemelhasse ao que vi ao adentrar no campus onde estudo. Um “piquete”, com tablados de madeira e barracas de camping vieram impor a democracia àqueles que ainda acreditam na greve como um direito. Não é mais. Greve agora é dever. Como não enxergamos isso? Parece que para alguns foi preciso nos mostrar tal contradição quanto ao conceito de greve – até hoje desconhecida - com um adestramento em forma de barricadas com restos de mesas e cadeiras. Um grupo, que se autoproclama “anarquista” – se é que isso ainda tem significado no Brasil de hoje – banca a vanguarda do pensamento politizado e, em absoluta minoria, passando por cima do Diretório Central dos Estudantes, do Centro Acadêmico, da Assembleia dos Estudantes e, literalmente, dos professores, declara, ou melhor, determina o fechamento de dois blocos da UFF. Se esse é o conceito que têm de democracia, que usem para si e seu pequeno nicho. Aos gritos, chamaram professores de fascistas e convidaram alunas a abrirem não mais os blocos, mas as pernas. Tal autoritarismo dessa minoria é até compreensível, já que - evocando Brizola – “quem sempre viveu de concessões e favores do poder[universidade] público não é capaz de ver nos outros se não os vícios que carrega em si mesmo.”Sou um aluno graduando a favor da greve, mas não mais estou indeciso quanto à forma que está se fazendo o apoio aos mesmos. ●

Sobre o MAD

Da editoria

Não faço parte dos acampados nem pretendo representá-los aqui. O que me proponho a fazer é explicitar algumas de suas posições, pelo que pude colher nos seus discursos, veiculados através da internet.

As pessoas acampadas no gramado em frente ao ICHF são conhecidas como Movimento de Ação Direta, ou MAD. O grupo não se define como um coletivo, já que não vota suas ações; também não se sente representado pela Assembleia dos Estudantes.

No contexto específico desta greve, os integrantes do MAD se propõem a usar este momento para avançar algumas outras lutas que eles pensam estarem esquecidas. Entre elas, a construção de um alojamento para os estudantes que não têm como morar em Niteroi ou no Rio, a disponibilização de café da manhã no bandejão e a regularização e aumento da bolsa de auxílio que a Universidade dá a quem não tem condições de se sustentar e estudar ao mesmo tempo.

O estabelecimento de um piquete seria, nas palavras de um dos integrantes “a forma de fazer as contradições da universidade explodirem”, ou seja, deixá-las evidentes. Entre elas, o fato de que, para eles, a universidade é um instrumento que replica a luta de classes da sociedade em geral.

Por tudo isso, montaram, durante um dia, um piquete – uma obstrução que evite a entrada de pessoas que não sejam a favor da greve. Na quinta-feira, dia 24, o piquete foi desmontado; o grupo segue acampado no Gragoatá. O grupo existe mais ou menos desde 2007, quando houve o acampamento Maria Julia Braga.●

Greve nas federais, uma surpresa?



Por Marcelo Badaró Mattos (Professor de História na UFF)

Os que ingressaram nas Universidades Federais nos últimos sete anos, ou seja, muitos servidores técnico-administrativos, cerca de metade dos docentes e praticamente todos os estudantes, nunca viveram a experiência de uma greve de docentes. Em 2011, quando Fasubra e Sinasefe (as entidades nacionais de servidores técnico-administrativos e trabalhadores das instituições federais de ensino básico e tecnológico), fizeram uma greve, havia uma forte expectativa de greve dos docentes das Universidades Federais, mas a categoria não se mostrou suficientemente mobilizada e a greve não aconteceu. Para muitos isso pareceu significar o fim de uma era, marcada por greves docentes a cada dois anos em média e por fortes enfrentamentos com os governos e seus projetos para a Universidade brasileira. No entanto, nas últimas semanas, propôs-se e deflagrou-se uma das mais fortes greves da história do sindicalismo docente nas federais, com a adesão de 48 instituições em poucos dias, muitas das quais Universidades novas, criadas nos últimos anos. Para quase todos, uma surpresa.

A dinâmica dos conflitos sociais nos reserva surpresas, mas não nos dispensa de compreendê-las. Por que uma greve tão forte emergiu nestes últimos dias?

Para entendê-lo é necessário reconhecer que a pauta do movimento, curta e direta, representa de fato uma forte insatisfação. A pauta: uma reestruturação da carreira docente e a melhoria das condições de trabalho. Sobre a carreira, a questão é simples: após 25 anos de aprovação do Plano Único que passou a reger a carreira docente, em 1987, sucessivas políticas salariais para a Universidade depreciaram e desestruturaram a carreira. O que se reivindica é, basicamente, uma única linha de vencimento nos contracheques (com a incorporação das gratificações e o entendimento do percentual de titulação como parte do vencimento), com 13 níveis, steps (percentuais entre os níveis) de 5%, acesso interno à carreira ao nível de Professor Titular, com paridade entre ativos e aposentados e isonomia entre professores(as) da carreira do magistério superior e da carreira de ensino básico, técnico e tecnológico. O piso para professor 20h no início da carreira seria de R$ 2.329,35 (um salário mínimo do DIEESE, calculado com base nas necessidades mínimas de um trabalhador e sua família, conforme dita a Constituição). O governo, que comprometeu-se a concluir negociações sobre o tema em março e agora fala em adiar a questão para 2013, acena com uma carreira mais desequilibrada em termos salariais, com um piso baixíssimo e promoções atreladas a critérios produtivistas, visando diferenciar um pequeno contingente melhor remunerado (por projetos e pela atuação em pós-graduações) e uma imensa maioria de docentes sobrecarregados com a elevação da carga de trabalho em sala de aulas de graduação. Já quanto às condições de trabalho, cinco anos após o início do REUNI, as instituições federais criaram centenas de novos cursos e ampliaram em dezenas de milhares as suas vagas de ingresso discente. O governo, entretanto, não garantiu até agora nem mesmo o relativamente (à ampliação das matrículas) pequeno número de concursos públicos para docentes com o qual se comprometeu em 2007. As obras de expansão carecem de verbas para sua complementação, gerando ausência de laboratórios, bibliotecas e salas de aula nas novas unidades, assim como superlotação nas antigas. Some-se a isso a enorme deficiência no campo da assistência estudantil, cada vez mais necessária na medida em que entre os novos estudantes tendem a ingressar contingentes cada vez maiores de trabalhadores(as) e filhos(as) de trabalhadores(as), sem condições de arcar com os custos de transporte, moradia, alimentação e material didático minimamente necessários para a vida universitária.

A greve pode ter colhido a muitos(as) de surpresa, mas está longe de ser um fenômeno de difícil explicação. Professores e professoras (e estudantes que aderem ao movimento em muitas universidades) optaram por esse instrumento de luta porque estão conscientes de sua necessidade diante da deterioração de sua carreira e das condições de trabalho. E perceberam que ou freiam agora o desmonte, ou serão arrastados ao fundo do poço em poucos anos.●

Este texto é uma versão menor de uma carta aberta publicada pelo professor Mattos em reposta ao professor Daniel Aarão Reis.

A Educação que queremos



Por William Alexandre, aluno de História na UFF e militante da União da Juventude Comunista

O Sistema Educacional Brasileiro como um todo passa por um momento de intensa precarização consentida e dirigida pelo governo federal. Em âmbito universitário isso se manifesta sobretudo como consequência da implantação do REUNI desde 2007. O REUNI amplia as vagas oferecidas pelas Universidades sem adequação da infraestrutura e o resultado é a situação calamitosa em que elas se encontram: insuficiência de bandejões, bolsas, bibliotecas, salas de aula, moradias estudantis, professores, técnicos administrativos, dentre tantos outros problemas. Há casos ainda mais graves nos campi do interior, onde os alunos são obrigados inclusive a assistir aula em containers.

Este ano o governo descumpriu o acordo que visava à reestruturação do plano de carreira e a melhora das condições de trabalho. Em matéria de capa publicada recentemente, o jornal O Globo constatou que, dentre todos os profissionais de nível superior, os professores são os que têm o piso-salarial mais baixo. Isso, para o país que é hoje a quinta maior economia do mundo é, no mínimo, uma vergonha. A greve foi o caminho inevitável para denunciar à sociedade o descaso do governo e para lutar pela reversão desse quadro.

Apesar do amplo apoio à greve, há ainda professores que não aderiram, alguns inclusive fazendo campanha contra ela. Há basicamente duas razões para isso. O primeiro caso é o dos professores em estágio probatório e os contratados, que vêm sendo alvo de assédio moral, e recebem reiteradas ameaças de demissão caso resolvam aderir à greve. O segundo é o dos professores para os quais a precarização é conveniente. Estes, que em grande maioria já atingiram o topo da carreira, não raramente dividem a dedicação exclusiva ministrando cursos pagos, que chegam a dez mil reais o semestre. Eles utilizam toda a estrutura pública para favorecer a iniciativa privada, e continuam existindo apesar de 88% da comunidade acadêmica ter se posicionado contra, em plebiscito realizado em 2010. Tristemente, tais doutores não estão preocupados com a qualidade do nosso ensino.

Os estudantes, entendendo que as reivindicações dos docentes são não apenas justas como também comuns às suas, apoiaram a greve e deflagraram a greve estudantil. No caso da UFF, temos reivindicações específicas. Reforçamos a pauta conquistada após a ocupação da reitoria no ano passado e em grande parte não cumprida – como o término da construção da moradia estudantil e dos novos prédios, contratação de professores e técnicos administrativos, aumento da quantidade de bolsas, construção de mais bandejões, especialmente para os campi do interior – bem como incorporamos novas reivindicações, por exemplo, a equiparação das bolsas ao salário mínimo.

Foi realizado na UFF, na última quarta-feira, um piquete imprudente e autoritário. Não foi decisão da Assembleia Estudantil, muito menos do Comando de greve, mas atitude deliberada de um grupo autointitulado anarquista que, em nome da “liberdade” e do “direito de autorrepresentação”, promove ações que desrespeitam o coletivo dos estudantes. O piquete é um instrumento de luta legítimo e que está presente na história dos trabalhadores. Sua função é inviabilizar, no todo ou em parte, o funcionamento regular de um serviço, sensibilizando as pessoas para um problema social. Não somos contra esse método de mobilização, no entanto, ele deve ser utilizado para agregar pessoas, e não para repeli-las com violência. Tais atos só fazem minar a unidade que precisamos nesse momento, e não contribuem em nada para nossa luta.

É importante perceber que este é um movimento nacional em defesa da Educação pública, gratuita e de qualidade. A greve já conta hoje com a adesão de 44 Universidades Federais. Não é coincidência também que ela ocorra num momento em que irrompem greves em todo o Brasil, na saúde, nos transportes, nas indústrias. Vivemos um tempo em que o Neoliberalismo avança sobre os direitos sociais e nos leva cada vez mais rápido em direção à barbárie. A precarização das Universidades é parte de um processo de precarização da vida como um todo. Temos o dever de dizer não a isso. Lutar por uma sociedade para além do Capitalismo é hoje mais que um ato de vontade, é um ato de esperança.●

Entrevista – Professor Carlos Gabriel Guimarães, sub-coordenador da pós-graduação em História na UFF



Por Antonio Kerstenetzky (aluno de História da UFF)

Por que o senhor não está fazendo greve?

Eu não sou contra a greve em si. Sou contra a forma de seu encaminhamento e contra o corporativismo. Essa greve tem um “fundo” de defesa do corporativismo. Não houve discussão nas bases. Por mais que eu tenha o maior respeito pela ADUFF enquanto espaço histórico e pela sua direção, acho que uma greve deve ser construída – passar pelos institutos, passar pelos departamentos e, com isto, ser referendada.

O senhor concorda com o professor Aarão Reis que a greve não é um modo de luta adequado às universidades?

No meu entendimento, a greve é uma forma de luta de qualquer trabalhador. Assim como o empresariado pode fazer lock-out, o trabalhador pode fazer greve. A questão é o momento. Esta greve não é meramente profissional – existe um fundo político-partidário (como também nas outras). No momento, os partidos à esquerda e à direita do governo estão aproveitando esta greve para fustigá-lo; não é à toa que os aparelhos privados de hegemonia ligados ao PSDB, chamados Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, tão dando este cartaz todo. Nunca deram! Na época do FHC, que teve greves grandes como esta, ou maiores, nenhum jornal dava este cartaz. Tem uma certa legitimidade nas reivindicações? Sim. Agora, tem algumas que não têm.

Por exemplo...

Por exemplo o plano de carreira. Existe a necessidade de se fazer um plano de carreira novo? Há, pois no corpo de docentes da UFF, se você quiser, você fica ad perpetuum ganhando um bom salário sem fazer nada. Existe um problema muito sério no funcionalismo público, que não é a estabilidade profissional, mas o fato de nós nunca contribuirmos para o teto. Que temos que ganhar bem, temos. Que temos que discutir a questão do produtivismo, temos e é fundamental.

Algumas lideranças dos movimentos estudantis dizem que os professores que não estão fazendo greve não o fazem porque têm outras fontes de renda. O que o senhor acha disso?

Não é nada disso! É óbvio que isso não é verdade! Essas pessoas não sabem nada. Tem muitos professores que não estão fazendo greve que não são “pelegos”, como afirma a militância. Já fizeram greve outrora. Eles não concordam na forma como a greve foi encaminhada pela ADUFF. Vamos parar com esse macarthismo. Eu fico espantado com essa garotada que se diz de esquerda usar artifícios de direita pra promover sua luta. Na assembleia da ADUFF do dia 22/05, que referendou a greve, eu discordei dos colegas (eram 92 presentes e eu fui o 92), pois no meu entendimento 130 professores (da assembleia do dia 10) não são suficientes para tirar e legitimar uma greve para um universo de 2950 professores. Que isto! Vamos construir direito. A greve deixou de ser uma questão só da corporação. Agora existe uma questão político-partidária muito grande. É legítimo? É. Mas não é no que eu acredito. Os alunos tão em greve? A grande maioria está em casa. Fazendo o que? Professores não estão vindo à UFF, porque vão encontrar um abandono (embora o ICHF esteja aberto) e sem os alunos. Tem muita gente aguardando decisões da reitoria sobre a reposição de aulas... Reposições, aliás, que vão ser pífias, e isso enfraquece a universidade.

Muitos dos professores envolvidos são novos. Por que o senhor acha que isso se dá?

Eu tenho alguns problemas com isso. Os professores novos estão em muito melhores condições do que quando eu entrei. Quando eu entrei, eu era Assistente 1, com mestrado, salário pífio. Eu nunca vi tanto dinheiro e recursos de agências de pesquisa, e existem muitos editais na FAPERJ, no CNPq... Concordo que o salário estar ruim frente aos das outras categorias profissionais do poder Executivo (para não falar do Legislativo e do Judiciário), isso é um erro nosso, que temos que assumir. Agora, eu duvido que qualquer governo, mesmo sendo de esquerda, dará 15% de aumento.

Quanto à carreira acadêmica, o governo apresentou um novo projeto... O que o senhor acha que está ruim, como deveria ser?

Rapaz, com 23 anos de magistério já estou chegando no topo da carreira. Há uma necessidade de rever este plano. Agora, tem que se discutir isso mais serenamente. Porque, como destaquei, é possível se manter como adjunto 4 [um dos níveis da carreira de professor universitário, que requer doutorado] pra sempre, ganhando 6, 7 mil, sei lá quanto, e não fazer nada, dar suas aulinhas e tchau. Não há nenhuma cobrança. A discussão é complicada por causa dos ânimos exaltados... Eu particularmente acho que deve haver um plano de carreira diferente do proposto pelo governo, mas também diferente do da ANDES. Eu sou contra o igualitarismo. Tem que haver uma priorização pelo mérito. Eu falo isso tranquilamente, já tive bolsa de produtividade negada algumas vezes, hoje sou pesquisador do CNPq. Nasci sem padrinho, sou pagão... Sou contra o corporativismo. Essa greve é de defesa do corporativismo: por isso sou contra.

O que o senhor acha do apoio dos estudantes à greve dos professores?

É legítimo. Agora, tem que tomar cuidado, porque os estudantes devem ter suas próprias reivindicações. Tem estudante sério, mas tem estudante que não quer nada, que tá tomando vaga de outros. No meu entendimento, os estudantes-militantes têm que ser os melhores alunos. Pra poder falar na frente dos outros, dos tais “pelegos”, que são tão bons ou melhores do que eles, com notas melhores. Entretanto, não é assim. Não quero cometer equívocos mas, para minha tristeza, uma grande parcela da militância estudantil é composta pelos piores alunos, que estão aqui há 4, 5, 6, 8, 10 anos, tomando o lugar de outros. Isso é um absurdo. E outra coisa – o movimento estudantil tem que ir para além dos muros da universidades públicas. Tem que ir pras universidades particulares também. Lá, os alunos das universidades federais são conhecidos como a elite dos alunos (escutei isso numa conferência que proferi na Estácio de Sá do Madureira Shopping). Tem que ter um projeto pra sociedade civil como um todo, assim como a ADUFF (ANDES) e SINTUFF. O trabalhador que está no mercado privado, principalmente o que ganha salário mínimo, não sei se tá aplaudindo a greve. Acho que muito pelo contrário, tá chamando a gente de outra coisa. Eu queria saber quantos professores aqui fariam greve se pudessem ser demitidos.

O departamento de história se reuniu para discutir a greve?

Ainda não, vai se reunir semana que vem. O departamento, no entanto, não deve votar se vai entrar ou não na greve. Neste momento, os departamentos e os institutos devem discutir a greve, mas não tomar posições como um todo. Professores que estejam a favor da greve, que façam greve; os contra, que possam vir.●

Editorial – Aulas, Greve, Piquete




No último dia 22 de maio, a Associação de Docentes da UFF deflagrou uma greve geral dos professores. Por isso, decidimos segurar nossa edição de maio, por reconhecermos que, neste momento, a universidade está mobilizada em torno da paralisação e as outras discussões que buscávamos empreender corriam sério risco de não serem apreciadas.

Não adotamos postura oficial a favor ou contra este movimento; se há algo, no entanto, o que sentimos especialmente é a ensurdecedora falta de informações com que os alunos matriculados no ICHF têm tido de conviver. A FOLHA não percebeu nenhuma movimentação oficial por parte dos docentes em greve de aproximação aos estudantes; por isso, decidimos fazer a presente edição. Nela, damos uma rápida explanação sobre os motivos alegados para a greve (além de disponibilizarmos os links para documentos essenciais da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior, ou ANDES, que podem ajudar cada um a melhor construir sua opinião), e a palavra a algumas figuras centrais ao que está acontecendo.

Em primeiro lugar, pedimos ao professor Marcelo Badaró Mattos, do departamento de História, que escrevesse um artigo sobre a greve. O professor Mattos aderiu ao movimento e não está dando aulas; ele está, além disso, sempre presente nos atos de greve que estão ocorrendo pelo campus e fora dele. Em seguida, entrevistamos o professor Carlos Gabriel Guimarães, coordenador da pós-graduação em História. Ele é contra a paralização, e seus argumentos são especialmente contundentes.

Por fim, pedimos a alguns integrantes do Comando de Greve Estudantil – membros da União da Juventude Comunista e do coletivo Paga Nada – para que eles nos explicassem o porquê da greve estudantil. Infelizmente, o único coletivo que se interessou foi a UJC, cuja opinião publicamos.

A FOLHA tentou por mais de uma vez entrar em contato com pessoas que participaram do piquete que bloqueou, na quarta-feira, dia 23 de maio, os blocos N e O do ICHF, mas não obteve resposta. De qualquer forma, assistimos a alguns de seus vídeos e tentaremos explicitar, também, sua opinião.

Ao final da edição, é possível encontrar duas seções de “Eventos”. A primeira indica o que acontecerá por aqui no mês de junho – a Universidade, afinal, não deve parar de funcionar. A segunda é um link para o extenso calendário de atividades de greve aprovado pela Assembleia de Estudantes da UFF. Não conseguimos publicá-lo aqui na íntegra por questões de espaço.●

Informações da ANDES

Link com:

carta da ANDES à Sociedade Brasileira;
Jornal da ANDES que explicita as mudanças no plano de carreira e salários propostos pelo governo e suas contrapropostas;
acordo firmado pela ANDES junto ao Ministério do Planejamento quanto às negociações sobre carreira docente.

http://www.4shared.com/zip/Rq-YxGjW/fwdprofessoreslkitentendatudos.html

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Por que estudar História? - Laura de Mello e Souza





Laura de Mello e Souza é professora titular de História Moderna da Universidade de São Paulo. É autora de O Diabo e A Terra de Santa Cruz (1986) e O Sol e a Sombra (2006), entre outros livros. Organizou e foi co-autora do primeiro volume de A História da Vida Privada no Brasil.

Para responder esta pergunta, a primeira frase que me ocorre é a resposta clássica dada pelo grande Marc Bloch a seu neto, quando o menino lhe perguntou para que servia a História e ele disse que, pelo menos, servia para divertir. Após 35 anos de vida profissional efetiva, como pesquisadora durante seis anos e, desde então – 29 anos – também como docente na Universidade de São Paulo, considero que a diversão é essencial, entendida no sentido de prazer pessoal: a melhor coisa do mundo é fazer algo que gostamos de fato, e eu sempre adorei História, sempre foi minha matéria preferida na escola, junto com as línguas em geral, sobretudo italiano e português, e sempre mais a literatura que a gramática.

Mas a História é, tenho certeza disso, uma forma de conhecimento essencial para o entendimento de tudo quanto diz respeito ao que somos, aos homens. Os humanistas do renascimento diziam que tudo o que era humano lhes interessava. A História é a essência de um conhecimento secularizado, toda reflexão sobre o destino humano passa, de uma forma ou de outra, pela História. Sociologia, Antropologia, Psicologia, Política, todas essas disciplinas têm de se reportar à História incessantemente, e com tal intensidade que o historiador francês Paul Veyne afirmou, com boa dose de provocação, que como tudo era História, a História não existia (em Como escrever a História). Quando os homens da primeira Época Moderna começaram a enfrentar para valer a questão de uma história secular, que pudesse reconstruir o passado humano independente da história da criação – dos livros sagrados, sobretudo da Bíblia – eles desenvolveram a erudição e a preocupação com os detalhes, os fatos, os vestígios humanos – as escavações arqueológicas, por exemplo – e criaram as bases dos procedimentos que até hoje norteiam os historiadores. Mesmo que hoje os historiadores sejam descrentes quanto à possibilidade de reconstruir o passado tal como ele foi, qualquer historiador responsável procura compreender o passado do modo mais cuidadoso e acurado possível, prestando atenção aos filtros que se interpõem entre ele, historiador, e o passado. Qualquer historiador digno do nome busca, como aprendi com meu mestre Fernando Novais, compreender, mesmo se por meio de aproximações. Compreender importa muito mais do que arquitetar explicações engenhosas ou espetaculares, e que podem ser datadas, pois cada geração almeja se afirmar com relação às anteriores ancorando-se numa pseudo-originalidade.

Sem querer provocar meus companheiros das outras humanidades, eu diria que a Antropologia nasce a partir da História, e porque os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII começaram a perceber que os povos tinham costumes diferentes uns dos outros, e que esses costumes deviam ser entendidos nas suas peculiaridades sem serem julgados aprioristicamente. É justamente a partir desse conhecimento específico que os observadores podem estabelecer relações gerais comparativas e tecer considerações, enveredar por reflexões mais abstratas. Portanto, a História permite lidar com as duas pontas do fio que possibilita a compreensão do que é humano: o particular e o geral.

A História é fundamental para o pleno exercício da cidadania. Se conhecermos nosso passado, remoto e recente, teremos melhores condições de refletir sobre nosso destino coletivo e de tomar decisões. Quando dizemos que tal povo não tem memória – dizemos isso frequentemente de nós mesmos, brasileiros – estamos, a meu ver, querendo dizer que não nos lembramos da nossa história, do que aconteceu, por que aconteceu, e daí escolhermos nossos representantes de modo um tanto irrefletido – na história recente do país, o caso de meu estado e de minha cidade são patéticos - de nos sentirmos livres para demolirmos monumentos significativos, fazermos uma avenida suspensa que atravessa um dos trechos mais eloquentes, em termos históricos, da cidade do Rio de Janeiro, o coração da administração colonial a partir de 1763, o palácio dos vice-reis. Quando olho para a cidade onde nasci, onde vivo e que amo profundamente fico perplexa com a destruição sistemática do passado histórico dela, que foi fundada em 1554 e é dos mais antigos centros urbanos da América: refiro-me a São Paulo. Se administradores e elites econômicas tivessem maior consciência histórica talvez São Paulo pudesse ter um centro antigo como o de cidades mais recentes que ela – Boston, Quebec, até Washington, para falar das cidades grandes, que são mais difíceis de preservar.

Não acho que se toda a humanidade fosse alimentada desde o berço com doses maciças de conhecimento histórico o mundo poderia estar muito melhor do que está. Mas a falta do conhecimento histórico é, a meu ver, uma limitação grave e, no limite, desumanizadora. Acho interessante o fato de muitas pesquisas indicarem que, excluindo os historiadores, obviamente, o segmento profissional mais interessado em História é o dos médicos. Justamente os médicos, que lidam com pessoas doentes, frágeis e amedrontadas diante da falibilidade de seu corpo e da inexorabilidade do destino humano. E que têm que reconstituir a história da vida daquelas pessoas, com base na anamnese, para poder ajudá-las a enfrentar seus percalços. Carlo Ginzburg escreveu um ensaio verdadeiramente genial, sobre as afinidades do conhecimento médico e do conhecimento histórico, ambos assentados num paradigma indiciário (refiro-me ao ensaio “Sinais – raízes de um paradigma indiciário”, que faz parte do livro Mitos – emblemas – sinais). Portanto, volto ao início, à diversão, e acrescento: o conhecimento histórico humaniza no sentido mais amplo, porque ajuda a enxergar os outros homens, a enfrentar a própria condição humana.●

Roupante - Paula Justen


Paula Justen é graduanda em Históra pela UFF.

Parada em frente ao armário, ela se decidia quem iria ser naquele dia. Era seu exercício diário, o único ritual freqüente de sua vida. Seu dilema nunca fora “ser ou não ser”, tal qual o de Hamlet, mas “quem ser”.
Já fora muitas. Hippie, pin up, geek, clássica, metaleira. Ser todas era o que a movia. Seu ego jamais a permitiu ser apenas uma, quando milhares a seduziam e lutavam para se fazer ouvir. Por que ser ela mesma, tão xoxa e sem sal, quando poderia ser quem ela quisesse?

Por isso ela abdicou de si mesma, e toda a sua alma se representava naquele simples ato matinal: o de se escolher para o resto do dia. É por essas e outras, também, que se pode dizer que “Ana tem prazo de validade”. Nada mais verdadeiro. Seu “eu” diário só durava um dia, pois renasceria das cinzas de seu passado no dia seguinte.

Mas, naquela manhã em especial, enquanto pensava nas possibilidades, viu que todas se esgotaram. Não conseguia ver nenhuma “Ana” para si. Já fora todas. O que a colocava na pior das opções (se houvesse outras): teria que ser ela mesma. Só de pensar nisso, todos os pelos de Ana se arrepiaram.

Um pensamento a fez relaxar. Poderia, afinal, fingir que ser ela mesma durante aquele único dia era apenas mais uma das muitas “Anas” que surgiam todos dias, ninguém notaria a diferença. Quem poderia dizer que aquela era a Ana verdadeira, entre tantas outras?

E assim que pegou um par de jeans qualquer, uma camiseta e um All Star velho e foi embora. Nada mais Ana. Nada menos Ana.

Arrependeu-se de sua escolha (ou falta dela) assim que fechou a porta. A vizinha da frente saía no mesmo momento, e comentou com uma voz suave:

- Bom dia, Ana. Você de hoje combina muito mais com você. Deveria ser essa mais vezes – e foi embora, sem notar a expressão revoltada no rosto de sua vizinha.

Como assim, Ana deveria ser Ana mais vezes? Que ultraje! Como ela queria não ser essa coisinha sem graça, apagada... Era direito dela ser quem ela quiser! Até mesmo não ser Ana.

Foi embora, e era como se milhares de dinamites explodissem dentro de sua cabeça. Quase mandou o porteiro tomar naquele lugar quando recebeu um comentário semelhante.

Mas o pior foi andar na rua. Era tão comum, tão comum, que poderia facilmente se misturar na multidão. Sentiu-se, então, pequena, uma poeirinha no meio de tantas outras. Não recebeu nenhum olhar surpreso ou depreciativo. Na verdade, não recebeu nenhum olhar. Ana como Ana não merecia ser vista, já que era igual.

Aquele sentimento opressivo crescia em seus olhos e em sua mente, a engolindo. Era sufocante. Que diabos estava fazendo ali daquele jeito?

Voltou para casa correndo. Precisava se libertar daquela sensação. Rasgou as suas roupas do corpo, então, e pegou uma fantasia de vedete embolorada no fundo do armário. Foi embora ser feliz, deixando Ana para trás. Seu único “eu” que não foi capaz de durar um dia sequer.

O Estado do ICHF - Antonio Kerstenetzky


Antonio Kerstenetzky é graduando em História pela UFF.


Atrasado como sempre, aportei em Niteroi. Previdente, não me arrisco a atravessar desembestado o sinal em que a mãozinha não pisca. A aula das 9h tem como professor um senhor de pontualidade inabalável; sendo assim, faço a má escolha financeira e, para chegar mais rápido, decido pelo 47, ônibus cuja frequência poderia levar o alienígena a Niteroi à crença de que o sistema de transportes da cidade sorriso é eficiente. De todo modo, neste 29 de março, em particular, nosso visitante não correria risco de ter esta impressão: não havia nenhum ônibus na rua. Uma greve fizera desaparecer de Niteroi e São Gonçalo o 47 e seus irmãos, 47A e 47B, além de seus primos, 32, 57 etc.

Resignado, singrei as calçadas sob chuva (sim, estava chovendo), disposto a entregar um “desculpa, professor, a chuva, a greve...” à porta. Ganhei o Gragoatá, desviei da obra do bloco novo, atravessei o lamaçal/estacionamento. Percebi com certo alívio que o lago que semestre passado se formava invariavelmente quando chovia, ali entre o Bloco N e a barreira de carros que protege o estacionamento/lamaçal das pessoas, deixou de se formar. Nada que possa ser creditado à prefeitura do campus, ao que parece – a obra que por vezes nos impede de ouvir o que é dito nas aulas avançou o suficiente para que algumas paredes metálicas que escoravam a água fossem movidas.

De todo modo, não tinha muito tempo para perder agradecendo mentalmente ao mestre de obras pela remoção de mais um dos obstáculos no caminho da educação pública superior de qualidade – uma aula me esperava.

Ledo engano. Podia ficar quanto tempo quisesse agradecendo: o bloco N estava trancado. O bloco que concentra todas as aulas dos cursos de História, Filosofia, Ciências Sociais e Psicologia estava fechado a chave. Ali em volta do portão, grupos de alunos e de professores, sonolentos e com frio, vagavam sem objetivo. Colado na porta gradeada verde, um aviso. Ainda bem, um esclarecimento. Certamente o responsável pelo bloco foi almoçar e deixou seu celular. Err... “A Aula de Antropologia I é na sala X do bloco O”. OK. O bloco O estava aberto e o N, fechado. Aliás, todos os blocos do campus estavam abertos e o N, fechado.

Culpa da greve dos ônibus, é claro.●