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sábado, 16 de novembro de 2013

Edição de Novembro de 2013

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Conteúdo:

1. Editorial: O bom seminário

2. Luiz Eduardo Soares: É o fim

3. Fernando Cardim de Carvalho: As Ciências Sociais e a Crise

4. “A mulher e a casa” A paixão de uma historiadora pelo romance entre uma senhora de escravos e um abolicionista: Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco - Eneida Queiroz

5. John Doe e o corpo de Gram Parsons - Illan Benoliel

6. A atualidade do Rap da Felicidade - Diego Uchoa

7. Agora, mas não o Agora, grupo do qual o Jean fez parte - Claudio Cabral

Luiz Eduardo Soares: É o fim

Luiz Eduardo Soares é professor de antropologia e ciência política na UERJ. Foi Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (1999-2000) e Secretário Nacional de Segurança Pública (2003). É co-autor de Elite da Tropa (2006) e Cabeça de Porco (2005) e autor de Meu Casaco de General(2000), e Legalidade Libertária (2006), entre outros títulos. 






a Vicente Guindani

O novo presidente do Senado chama-se Renan Calheiros. Se você, calouro, jovem estudante da UFF, não se lembra desse nome, um gole no Google refrescará sua memória. Mas não é disso que pretendo tratar. Quero refletir sobre o que ele disse, em seu pronunciamento histórico: “A ética não é fim, é meio.”

Pois eu digo: é o fim.

Segundo Renan, o fim é o desenvolvimento do país. Em outras palavras: pode-se alcançar a finalidade desejada (aqui, para efeito do argumento, não importa qual ela deveria ser; posso deixar ao senador a escolha) por meio ético ou anti-ético (como observou Vicente Guindani, em sua página no Facebook). Portanto, o fim visado independe do meio empregado para atingi-lo. Seu valor independe do meio adotado. Seu conteúdo é autônomo, relativamente ao juízo ético. Ou talvez o senador preferisse afirmar que o fim contém, sim, valor e mereceria avaliação sobre sua qualidade ética, mas tal qualidade não guardaria relação com o meio mobilizado para construi-lo. Ou seja: a melhor sociedade possível, segundo qualquer critério, poderia perfeitamente ser fruto de uma carnificina. O genocídio não macularia a pureza de sua arquitetura sublime.

Já se viu aonde nos leva a teoria Calheiros sobre a dissociação entre meios e fins: não haveria nenhum problema com a corrupção, desde que os fins fossem elevados. Tampouco seriam questionáveis práticas ostensivamente anti-éticas, mesmo as truculentas, desde que se pusessem a serviço de finalidades nobres. Foi essa a tese postulada pelo General Ernesto Geisel, penúltimo ditador do regime militar inaugurado com o golpe de 1964, em seu depoimento ao CPDOC, da FGV, quando lhe perguntaram sobre a tortura: em certas situações, é necessária, é defensável, admitiu o déspota ancião. Pelo menos ele teve a hombridade de confessar o que pensava e o que fez, ou mandou fazer, aos presos políticos. Outros líderes da ditadura foram pusilânimes e hipócritas. Essa virtude, entretanto, não torna seus crimes menos graves.

E o que dizem aqueles policiais que continuam torturando, depois do fim da ditadura? Afirmam o mesmo: se o fim é nobre, o mais torpe dos meios justifica-se. É a teoria Bush, aplicada em Guantânamo e nas masmorras que a CIA mantém mundo afora. O discurso não muda: para salvar a vida de uma criança sequestrada no Rio de Janeiro; para livrar o Brasil dos riscos de ver-se tragado pelo abismo comunista; para salvar a civilização ocidental ameaçada por atos de terror nuclear: tortura-se o suspeito. Foi também o que fizeram –e com a mesma racionalização-- os soldados de De Gaulle na Argélia, os operadores de Fidel em Cuba, os fascínoras de Pinochet no Chile e os açougueiros do partido comunista na Coréia do Norte. Como foi a praxe entre nazistas, stalinistas e os tiranos de todos os tempos.

A teoria Calheiros não é apenas inconsistente, filosoficamente. Ela é parte de uma linhagem histórica cujo rastro de sangue mal se oculta sob a retórica ornamental. Nesse campo, caminham de mãos dadas a corrupção patrocinada pelas melhores intenções socialistas; os golpes de mesa no movimento estudantil, tramados pela sagacidade dos militantes sectários; os dossiês forjados pela esperteza dos políticos progressistas; e o pau de arara dos verdugos da direita mais selvagem.


Nos livros sagrados da esquerda dogmática, direitos humanos e ética humanista não passam de categorias decadentes do vocabulário pequeno-burguês. Nas Bíblias da direita, essas categorias são meros artifícios românticos e idealistas para defender bandidos ou para enfraquecer a defesa da lei e da ordem. Rejeito ambas as visões, e as considero cínicas e manipuladoras. De meu ponto de vista, o postulado kantiano permanece insuperável: a dignidade do ser humano constitui um fim em si mesmo e não pode ser reduzida a instrumento ou meio para quaisquer fins, mesmo que sejam os mais elevados. Quando aceitamos a menor concessão nessa matéria, sacrificamos, irremediavelmente, as ideologias mais generosas, as mais belas utopias e a própria razão da esperança na política. Torturas e violações dos direitos humanos são intoleráveis, estejam a serviço de poderes à direita ou à esquerda. Até porque poderes que torturam merecem uma única qualificação: impostura. Por outro lado, os fins carregam consigo as virtudes ou os horrores dos meios empregados para alcançá-los. São os meios que sopram no oco do fim edificado sua alma.

Fernando Cardim de Carvalho: As Ciências Sociais e a Crise

Fernando J. Cardim de Carvalho é professor Emérito do Instituto de Economia da UFRJ, além de ser um dos mais ilustres pós-Keynesianos do Brasil. Entre suas publicações mais importantes vale citar Mr Keynes and The Post Keynesians: Principles of Macroeconomics for a Monetary Production Economy (1992), e Dívida Pública: Propostas para Aumentar a Liquidez (2003), além de diversos artigos. 



Como se tornou impossível ignorar, desde 2007, quando a crise financeira se iniciou nos Estados Unidos, e 2008, quando ela contagiou um grande número de países (inclusive o Brasil), o mundo praticamente inteiro vive uma situação de crise econômica e social profunda. O desemprego na União Europeia como um todo é superior a 11% da população economicamente ativa (o que exclui aqueles desempregados que já desistiram de procurar empregos, chamados de “desencorajados”), mas chega a um quarto da PEA (população economicamente ativa) em países como a Espanha. Jovens são particularmente punidos pela falta de oportunidades de trabalho. Na Espanha, novamente, cerca de metade dos jovens com idade suficiente para ingressar no mercado de trabalho não encontram emprego. A emigração voltou a ser a saída para um grande número de jovens na Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia e outros países europeus, como no final do século XIX. Diferentemente daquela época, porém, esses países são abandonados por jovens com formação universitária, cuja qualificação para o trabalho mais produtivo um dia será amargamente lembrada com saudade e cobiça por sociedades envelhecidas e empobrecidas, que com certeza lembrarão dos tempos em que a parte mais promissora de sua juventude foi forçada a buscar construir sua vida em outro lugar. Nos Estados Unidos a situação não é tão dramática, pelo menos no momento, mas o desemprego também prossegue elevado, cerca de 9%, a economia prossegue mantendo uma taxa de crescimento medíocre, e o horizonte continua marcado por nuvens negras, em uma permanente ameaça de novas tempestades. Para nós, no Brasil e em outros países ditos “emergentes”, a ilusão de que estaríamos protegidos destes ventos solares, se desfez rapidamente no ano passado, em que se aprendeu que é possível minimizar seus impactos (embora não seja possível simplesmente anulá-los), mas apenas através da adoção de políticas econômicas muito mais eficientes e nem planejadas do que o que se praticava até então e cujo perfil mais exato ainda é objeto de busca.

Em meio a tudo isso, pesquisadores e estudantes de ciências sociais (inclusive economia e história) veem-se em uma posição peculiar, frente a uma oportunidade única, eu não diria em cada geração, mas, na verdade, em pelo menos duas ou três gerações. A crise atual já dura, se contada a partir do inicio de 2007, mais de cinco anos, sem solução à vista. Praticamente ninguém aposta em uma recuperação efetiva em menos de cinco anos, e muitos sugerem pelo menos dez anos antes que as dificuldades possam ser dadas como superadas. Se a crise, por intervenção divina (ou, como diríamos nós, pela intervenção de fatores exógenos) acabasse hoje, por sua duração, alcance e intensidade ela já seria classificada como uma depressão. Economias capitalistas conhecem frequentes períodos de dificuldades. Na verdade, costumam ser tão frequentes e sistemáticos, que um ramo importante da teoria econômica se dedica há muitas décadas exatamente ao estudo dos chamados “ciclos econômicos”, isto é, o fenômeno da repetição periódica de períodos de expansão e contração, chamados de prosperidade e recessão. Usando uma expressão que costumava ouvir de minha bisavó, a teoria dos ciclos nada mais é do que uma versão formalizada do princípio de que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Períodos de prosperidade sempre serão inevitavelmente sucedidos por recessões (ainda que perceber a sucessão de fases seja mais fácil do que conseguir descobrir uma razão sólida para isso).

Não é disso que se fala quando se fala de uma depressão. Depressões são situações em que a contração é tão forte e profunda que a repetição de fases é interrompida, sabe-se lá por quanto tempo. Uma depressão não é apenas uma recessão especialmente dura, mas uma situação em que os mecanismos normais de recuperação da economia são danificados em tal extensão que essa recuperação só poderá ser conseguida pela intervenção de algum fator exógeno (novamente, talvez alguma divindade, mas mais provavelmente o Estado mesmo).

É consenso entre analistas que o mais próximo da situação que conhecemos pode ser encontrado na Grande Depressão da década de 1930. Naquela década, a crise iniciada com o colapso do sistema bancário norte-americano entre 1931 e 1933 levou a economia daquele país, e o resto do mundo, a uma situação da qual só se conseguiu sair com o início da Segunda Guerra Mundial, que, do ponto de vista econômico, nada mais foi do que um período de enorme crescimento de gastos públicos, redinamizando as economias envolvidas.

Observar o desenrolar de uma crise como a atual é um privilegio dos estudantes e pesquisadores de ciências sociais. Mal comparando (ou talvez bem comparando), é como ser um epidemiologista nos tempos da Peste Negra. Pode-se observar “ao vivo” e em “tempo real”, como esses processos se desenrolam, como o colapso financeiro americano de 2007/2008 se transmutou na crise da dívida pública na Europa, na reorientação do crescimento chinês para o mercado interno, na busca de novas estratégias de crescimento no Brasil. Mas a oportunidade não existe apenas para economistas. Observar a polarização política nos Estados Unidos ou, um fenômeno ainda mais significativo, a desintegração de sociedades como a grega, ou a emergência de partidos políticos de extrema-direita em praticamente toda a Europa, as ameaças a própria existência da União Europeia, o desenrolar das tensões políticas na China, fenômenos que se não resultam da crise são fortemente influenciados por ela, é um desafio para estudantes de ciência política, sociologia, história. Até mesmo a geografia mais tradicional está sendo desafiada pelas iniciativas gregas, por exemplo, de vender parte de seu território (especialmente suas cobiçadas ilhas) para pagar o que lhes é  imposto pelos credores europeus.


A grande depressão dos anos 2010 representa, portanto, uma grande oportunidade de estudo para cientistas sociais de todas as áreas. Não é razão para euforia, é claro, porque se trata de um período de intenso sofrimento para um número astronômico de pessoas em todo o mundo. Mas vale sempre a pena lembrar que do estudo gerado pela grande depressão dos anos 1930 emergiram políticas que garantiram o maior período de prosperidade conhecido na história do capitalismo, no pós-Segunda Guerra. É importante não apenas torcer para que desta crise possamos sair com um conhecimento de processos e de instrumentos de intervenção igualmente eficientes. É preciso investir esforços e pesquisas para que isto ocorra. 

Editorial: O bom seminário

Em primeiro lugar, gostaríamos de dizer que aqui não vai nenhuma acusação moral. Passar seminários não é sinal de falcatruagem. O que é objeto, aqui, de crítica, é o seminário longo, em que o professor abre mão de mais de uma hora de sua aula, deixando-a nas mãos de grupos (às vezes enormes!) de alunos. Não é a apresentação de textos por alunos. Que haja um ou mais responsáveis por um texto em uma aula é ótimo. Não se trata, tampouco, de apresentações curtas em que o protagonismo do professor (que foi quem, afinal, nos motivou a nos inscrevermos na disciplina) não é posto em questão.
De qualquer forma, talvez tenhamos aqui um espaço privilegiado para dar um feedback a nossos bons professores (os que podemos sensibilizar!) sobre os seminários de alunos que são, infelizmente, muito comuns. Cabe dizer que a ausência maciça de alunos nesse tipo de seminário, quando a presença não é cobrada, não é sinal de nossa falta de seriedade. É, sim, sintoma do que procuraremos descrever aqui.
Ao legar a um grupo de 3 a 7 alunos a responsabilidade de preparar uma aula (que é o que é, afinal, um seminário), um professor decerto dá a este grupo uma oportunidade única de aprendizado – afinal, terá de ser professor por um dia, com todas as investigações bibliográficas que esta atividade pressupõe.
Preparar esta aula não é, no entanto, a principal atividade profissional dos que preparam o seminário. Geralmente, a aula em questão será, também, o primeiro contato que terão com o material a ser apresentado. O fato de ela valer ponto contribui para grande tensão e ansiedade por parte dos que apresentam.
O resultado, para os que assistem seus colegas, costuma ser bem pouco apelativo. Há um acordo tácito entre os que apresentam e os que assistem para que não haja perguntas, para não complicar a vida dos que estão na frente, que afinal se preocupam com a nota a receber. O que se desenvolve é, portanto, um simulacro de aula, que uns assistem e outros dão aula, ambos motivados por desagradável obrigação. Invariavelmente, o grupo ultrapassa o tempo limite que tinha, e uma possível discussão a ser feita no final da aula não acontece.

Em suma: não é que se devam proibir seminários. Mas eles devem ser tratados, de forma geral, com mais cuidado. Não são bons substitutos de professores, pelo contrário: bons seminários, curtos, com discussão, parecendo-se menos com aula e mais com apresentações de textos específicos (de preferência sendo possível que os demais alunos os tenham lido!) são o ideal.

“A mulher e a casa” A paixão de uma historiadora pelo romance entre uma senhora de escravos e um abolicionista: Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco - Eneida Queiroz

A personagem que narra este romance é uma historiadora. Narradora de um livro, cuja primeira frase é um conselho: “não façam história”. E assim, pela via da negação, o enredo segue como uma declaração de amor à história do Brasil.

Aqueles que fizeram faculdade de história provavelmente sentiram a mesma angústia que eu e alguns colegas sentimos, ao vermos o final da graduação se aproximar. Não só porque gostávamos do curso, mas também porque se aproximava o desemprego: o que fazer? Prosseguir nos estudos com mestrados e doutorados? Com quais garantias de futuro? Dar aulas em escolas? Fazer pesquisa? Onde? Por qual salário?
Essa não é angústia que recai só sobre os graduandos de história, recai sobre inúmeras carreiras, mas entre os alunos das ciências humanas costuma ser mais cruel. Entretanto, mesmo diante de algumas desistências (como colegas que fazem outra graduação, que partem para os concursos públicos de tribunais e bancos, que seguem para outros trabalhos), alguns persistem. Por quê?
Porque gostam.  
Sim, nós amamos história. Como disse Marc Bloch ao seu neto, a história nos diverte. E para alguns: isso basta.
Para mim, que sou graduada e mestre em história pela UFF, essa diversão quase sempre me bastou. Via-me por vezes imersa e encantada com os textos das disciplinas (ou ao encontrar as fontes do meu mestrado no Arquivo Nacional), por outras preocupada com as poucas oportunidades da carreira. E, assim, entre amar a história e me repreender pela escolha da carreira, não me via recomeçando do zero em outra graduação.
Passei no concurso para historiadora do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), uma autarquia do Ministério da Cultura. Esse foi um concurso com vagas para museólogos, sociólogos, arqueólogos, historiadores, antropólogos: nós de humanas. Tive contato com inúmeros museus que não conhecia, seus acervos e histórias fantásticas. Um deles me chamou mais atenção: o Museu Casa da Hera, em Vassouras, onde viveu a financista Eufrásia Teixeira Leite. E eu, que sempre amei a história assim como amo a ficção, acreditei que poderia narrar a história desse museu (e de seus personagens) por intermédio de uma historiadora tão apaixonada, e ainda assim tão dividida, quanto eu e outros tantos que conheço: Desirée.
Desirée é uma mistura de inúmeros colegas da graduação e do mestrado. Para aqueles que tentam me encontrar nela, eu digo: não sou eu, somos nós. Assim, frustrada com os baixos salários e as poucas oportunidades da carreira, Desirée tenta alertar os leitores sobre os perigos dessa opção de vida. Mas ela própria não consegue se desvencilhar da carreira que tanto ama.
Apaixonada por história do Brasil, a personagem descobre no novo trabalho a história de Eufrásia Teixeira Leite e o abolicionista Joaquim Nabuco. Ao começar a trabalhar na antiga residência de Eufrásia, a protagonista é surpreendida por esse romance e faz uma viagem sem volta ao século XIX, por meio das cartas trocadas entre os dois.
Eufrásia Teixeira Leite foi uma mulher do século XIX que decuplicou a herança do pai no mercado financeiro, doou-a para instituições de caridade religiosas de Vassouras, não se casou nem teve filhos, um fenômeno raro para a época. No entanto, corre a lenda de que ela teria pedido para ser enterrada com as cartas do noivo. Percebi, de imediato, que havia uma complexidade naquela mulher que precisava ser explorada.
O noivo era o famoso Joaquim Nabuco. Como se não bastasse a luta pela abolição da escravatura na qual se engajou (que foi uma das maiores batalhas políticas desse país), Nabuco foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, amigo de Machado de Assis, amigo de Eça de Queirós, deputado, diplomata, e historiador.
Rica e inteligente, esta senhora de escravos desperta uma paixão inconciliável no abolicionista. O famoso casal vive uma história de amor entre o Brasil e a Europa, com muitas correspondências, viagens e encontros. Amor que só se concretiza, quando os dois equalizam as divergências ideológicas e tornam-se um só sentimento, ainda que por pouco tempo.
A ideia do romance era fazer Desirée e os leitores terem contato com as cartas escritas por Eufrásia, transcrições das originais guardadas pela Fundação Joaquim Nabuco, e encontrar as desaparecidas cartas escritas por Nabuco. E, assim, costurá-las com os eventos históricos que o país vivia. Fiz questão de casar as cartas com os diários de Nabuco, e toda vez que Eufrásia era mencionada, eu transcrevia o que ele dissera e recriava a cena: como o primeiro Natal em Paris, o reencontro com ela em Roma alguns meses após o término do noivado, o reencontro na casa da Princesa Isabel. Isso tudo aconteceu, ele próprio documentou. Também recriei algumas cenas de infância que Nabuco narrou no livro Minha formação. Entre os gaps das fontes, a ficção do romance saltava mais alto, mas sempre tentando amparar-se na verossimilhança.

Desirée submergiu nas águas escuras da história e eu ainda não consegui reencontrá-la.

Se você, assim como ela, também se perde em seus textos e suas fontes com tanta facilidade, e quiser ler o livro, ele pode ser encontrado em seu formato digital no site da Livraria Saraiva. O livro físico pode ser encontrado no site da Editora Baraúna ou no site da Livraria da Travessa.

Eneida Queiroz é graduada e mestre em História pela UFF

John Doe e o corpo de Gram Parsons - Illan Benoliel

Quando me pediram para escrever este  texto, não sabia sobre o que poderia ser. Outro dia, vi um filme sobre a história de um músico que já venho acompanhando há algum tempo, chamado Gram Parsons. Gram era um músico na década de 60 e 70 e fez parte de diversas bandas, como The Byrds e o Flying Burrito Brothers. Foi um dos principais precursores do country-rock e diversas bandas o têm como principal influência, como Poco, Eagles e o Pure Prairie League. Também era um grande amigo de Keith Richards e o ajudou a escrever Wild Horses. Mas não é sobre a vida dele que quero falar, apesar de contar um pouquinho sobre ela no início desse texto, mas sim sobre sua morte. Mais precisamente o que aconteceu com ele depois de morrer.



A infância de Gram não foi fácil, apesar de vir de uma família rica. Seu pai era depressivo, e, quando Gram tinha apenas 12 anos, cometeu suicídio. Dois anos depois sua mãe se casa com Robert Palmer, e pouco depois morre de cirrose, causada por um problema com bebida. Quando Gram foi para a faculdade, começou a perseguir seu sonho de ser um músico de country e a se associar a bandas, até que montou a The International Submarine Band, que lhe trouxe algum reconhecimento. Depois se juntou ao The Byrds, que já fazia grande sucesso nos Estados Unidos. Gram saiu do Byrds depois de se recusar a tocar num show na África do Sul do Apartheid. Sem banda, se juntou ao Flying Burrito Brothers, onde passou mais alguns anos, antes de começar sua carreira solo, quando descobriu uma das vozes femininas mais famosas do country, Emmylou Harris. Ela participou dos dois álbuns que Gram gravou, um deles só lançado após a sua morte.

Gram tinha um road manager, Phil Kauffman, que tomava conta de todos os seus assuntos enquanto ele estivesse na estrada. Parsons gostava de passar seu tempo livre num parque na Califórnia chamado Joshua National Park. Ele e Phil eram grandes amigos e eles tinham o seguinte pacto: o primeiro que morresse seria cremado ali.


Após completar o segundo álbum de sua carreira solo, Gram decide ir ao Joshua National Park para comemorar. Mas no dia de 19 de setembro, é descoberto morto em sua cama no hotel do parque.

Após o triste incidente, Phil entrou em contato com o seu padrasto, Robert Palmer, que estava organizando o funeral de Gram em sua terra natal, no Texas, para o qual nenhum de seus amigos, feitos ao longo da sua carreira musical, seria convidado. Explicou a ele que o desejo de Gram era ser cremado no parque, mas seu padrasto nem considerou a possibilidade. Com o padrasto irredutível, Phil decide tomar uma ação drástica.

Enquanto o corpo esperava no aeroporto de Los Angeles para ser buscado por Robert, que vinha do Texas para isso, Phil Kauffman contrata um carro funerário para sequestrar o corpo de Gram, um carro amarelo com pequenas flores desenhadas em suas laterais. Chegando ao aeroporto, Phil corrompe um agente funerário e preenche diversos documentos como se o corpo que estava levando fosse de um John Doe (Zé Ninguém). Com isso, acaba conseguindo raptar o corpo de um dos grandes músicos do rock’n roll e de seu grande amigo Gram Parsons.

Enquanto tudo isso acontece, uma ex-namorada de Gram tentava arrumar um jeito de fraudar o testamento para incluir seu nome; por isso entra também na corrida para conseguir chegar ao corpo de Gram, a essa altura já resgatado por Phil.

Começa então uma das perseguições mais bizarras da história da música: Phil fugindo com o corpo enquanto Robert alugava um carro para ir atrás; atrás dos dois, a ex namorada de Gram.

No meio do caminho Phil para em um posto para fazer um lanche, e sem entender nada de como cremar um corpo, compra cinco litros de gasolina. Perto de chegar no parque, Robert consegue alcançar o carro onde está Gram mas Phil acaba por convencer Palmer a os deixar irem até o final. Mas a ex ainda estava na perseguição, e quando Phil finalmente alcança o parque, joga a gasolina e bota o fogo no corpo, ela estava sendo parada pela polícia e estava tentando convencer um guarda a ajudá-la. Os dois se assustam quando um grande clarão aparece no céu.

Quando Phil jogou o isqueiro dentro do caixão com toda aquela gasolina no meio do deserto, Gram não cremou, simplesmente. A quantidade de gasolina era tanta que o corpo explodiu numa bola de fogo no céu, deixando uma mancha preta no chão que está lá até hoje onde tudo aconteceu.

O clarão serviu para as autoridades (que também estavam a procura do corpo e de seu sequestrador) descobrirem o seu paradeiro. Mas como não existiam leis contra sequestrar corpos, Phil foi apenas multado em 750 dólares por deixar 16 quilos de pedaços de corpo queimados pelo parque.

Depois disso, o que restou do corpo foi levado e enterrado em um cemitério em Louisiana. Hoje em dia existe um memorial a Gram Parsons no parque onde tudo aconteceu, e Phil acabou por escrever um livro contando suas histórias como road manager, que conta esta e muitas outras. E a música de Gram sobrevive até hoje.

A atualidade do Rap da Felicidade - Diego Uchoa

“Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”

Com certeza, a maioria da população das cidades brasileiras já ouviu esses versos escritos por Cidinho – cantado pela dupla de MC’s Cidinho e Doca –, verdadeiro hino do funk carioca dos anos 1990 ao lado de outras letras como o Rap do Silva e Rap do Solitário. A música, um verdadeiro desabafo, hoje conquistou seu espaço no “asfalto” e saiu do seu cárcere de onde ficou durante um bom tempo, principalmente, devido à associação feita pela classe média e alta do funk com o movimento do tráfico de drogas e da violência que assombra a cidade desde os anos 1980. Muitos esquecem, contudo, que a música traz inúmeras denúncias por parte da população favelada que reclamam a violência cotidiana, a falta de respeito que sofrem em sua comunidade, e até a impossibilidade de desfrutarem de espaços de diversão, como os famosos bailes funk. O mais intrigante é que ela foi lançada em 1995… Mas, essas questões não são extremamente atuais?

Mais de 10 anos depois do sue lançamento, ao nos depararmos com o noticiário, percebe-se que o sofrimento contido nos versos que fizeram multidões se identificar ainda está claro aos olhos de muitos. Se em 2008 uma esperança de paz foi plantada nos seios de muitos moradores dos morros cariocas com a implementação da primeira UPP no Morro do Santa Marta, hoje ela se encontra muito mais presente nas propagandas governamentais e da iniciativa privada. Na prática, o que se observa é a substituição do controle territorial e do monopólio da violência dos traficantes pelo Estado. A violência que chegou ao ponto de ser naturalizada pelos moradores das favelas não foi de maneira nenhuma extinta, mas, na maioria dos casos, substituída por expressões que não ferem a imagem da cidade. Dessa forma, saem do quadro os traficantes armados para dar lugar ao silêncio perturbador dos moradores a respeito dos constrangimentos que sofrem.

Em reportagem recente do Jornal Nacional, referente à ordem de fechamento do comércio numa área do Complexo do Alemão por traficantes, percebem-se claramente como os moradores se comportam com episódios como este, eles tem medo de falar. Fica evidente um dos principais erros do projeto da UPP: o peso que a voz dos moradores tem na elaboração do projeto, se não nula, quase insignificante. Assim, versos como “Com tanta violência eu tenho medo de viver/ Pois moro na favela e sou muito desrespeitado”, são totalmente verossímeis ao cenário atual do Rio de Janeiro, mesmo depois das iniciativas do governador Sérgio Cabral, marcadas pela falta de diálogo. O que se lamenta – e no caso desse texto se protesta! – é que a retomada desses territórios não está sendo acompanhada da inserção da população dos morros ao ideal de cidade pretendida, pois, mesmo a classe média/alta comprando o projeto das unidades pacificadoras, não se identifica a interação cultural e, até mesmo social, entre “morro” e “asfalto”. Preconceitos ainda são marcantes, e as ações do Estado parecem não ir de encontro a isso.

Um dos maiores exemplos é o caso da proibição dos bailes funk nas comunidades pacificadas, medida que fica a cargo dos comandantes de cada unidade. Vítimas de preconceitos enormes no começo do funk no Rio de Janeiro, os bailes que ficavam lotados e começaram em ruas e comunidades do subúrbio carioca são a expressão máxima dessa cultura que foi reconhecida como manifestação legítima em 2009, depois de uma lei elaborada pelos deputados estaduais Marcelo Freixo e Wagner Montes. Mas, nos dias de hoje, são proibidos em várias comunidades já pacificadas, e em outras, como a Rocinha, foram reduzidos a um, o Emoções – antes existiam mais de cinco grandes bailes, dentre eles o da Rua 1 –, volta-se, desse modo, aos versos “Diversão hoje em dia não podemos nem pensar/ Pois até lá no baile eles vêm nos humilhar”… A justificativa para a proibição? A sua anterior associação ao tráfico e a apologia ao crime organizado, sintetizadas nas letras dos “proibidões”. Mesmo quando os bailes apresentam um projeto que deixa claro o seu afastamento dessas antigas manchas relacionadas ao domínio dos morros pelos traficantes, eles acabam não se realizando devido aos inúmeros empecilhos burocráticos existentes. O resultado disso é uma afronta à cultura popular carioca que passa por cima até mesmo dos protestos dos moradores pedindo a volta dos bailes.


Assim, a mensagem passada por Cidinho e Doca em meio a euforia dos anos 1990, década do boom das bandas de rock nacional, do pagode romântico e das vitórias de Airton Senna, continuam totalmente atuais e mantém a sua essência primeira. O cerceamento político e social sofrido pela população de inúmeras comunidades cariocas ainda é um dos tópicos principais das políticas públicas do estado e do município do Rio, e a inserção de forma plena deles é imprescindível para o progresso verdadeiro da cidade. Pensá-la a partir de todos é o desafio, ou cairemos nas mesmas contradições: a classe média/alta acha bom o projeto da UPP porque “melhora” a condição de vida das comunidades, porque assim eles não ficam invadindo o seu espaço de sociabilidade – prova disso é o intenso protesto com a construção do Metrô do Leblon e Ipanema que se vê atualmente. Talvez esse fosse o melhor momento para tentar mudar essa situação, aproveitando o contexto de investimentos para Copa do Mundo e Olimpíadas e construir uma ideia de cidade inclusiva e democrática onde a população teria a consciência que todos têm seu lugar.

Diego Uchoa é graduando em História pela UFF

Agora, mas não o Agora, grupo do qual o Jean fez parte - Claudio Cabral


                           Agora escrevo letras que talvez não sejam letras no sentido tradicional, ou melhor, no sentido menos tradicional do termo letras, ou seja, aquele de letras a, b, c, d, etc, o sentido tradicional das letras, eu escrevo no outro sentido, digo, não o das letras de música, essas amor dor terror pudor horror, mas essas a, b, c, d, e as  escrevo porque estou em Paris, morando em minha primeira semana nesta terra que chamo Paris, que não é Páris, o do épico grego, que talvez tenha outro nome, mas não me lembro bem, mas Paris a cidade-luz ironicamente a cidadessubterrâneo, de acordo com o novo acordo gramatical que diz que o hífen deve morrer, e que vale a supremacia da letra dupla quando se trata de “r” ou ass(e), mas é mesmo assim a cidadessubterânea porque tem um, não, porque tem vários subterrâneos, tem suas catacumbas, que tem cadáveres e originaram o gótico, não o gótico arquitetônico, mas o gótico da zuera, ou seja, o gótico do pessoal da década de setenta que gostava de beber e vivia em Paris, no subterrâneo, e teve até salas de cinema no subterrâneo de Paris, aquela que tem um outro subterrâneo, o metrô, que é mais comum e extremamente subterrâneo, diferente das catacumbas, que são um pouco incomuns, porque a maior parte delas foi fechada e hoje em dia só há alguns quilômetros de catacumba aberta, mas em compensação há muitos quilômetros de metrô que podemos usar, assim como os góticos também usam, mas hoje em dia não está tão na moda, não o metrô, mas ser gótico não no sentido do gótico arquitetônico, como já disse, mas desses que gostavam de beber nas catacumbas de paris na década de setenta, na verdade a ideia de cidadessubterrânea veio do Jean, o Jean é um amigo meu que é filósofo, mas na verdade e na origem também é músico, apesar de ser um bom filósofo, digo, é o que ele diz eu não conheço de filosofia, mas parece que ele realmente é um bom filósofo, é um cara com muitas referências e que consegue citar muitas coisas e que tem muitos pontos bons sobre muitas coisas e que me ensinou muita coisa interessante sobre a área dele que é a ontologia que é uma área muito boa digo muito maneira digo uma área muito interessante da filosofia é a área que trata do essencial das coisas mas não sei se eles usam o termo essencial talvez seja coisa de outra linha da filosofia essa do essencial que talvez não seja a do Jean que é meu amigo que mora não morou em Paris faz um tempo e me disse que quando falam que tem um beliche na real são duas mesas uma em cima da outra ele é um cara muito sábio mas Paris é uma cidade complicada mas o Jean disse que Paris é uma cidadessubterrânea numa conversa comigo e numa gravação que ele fez num porão no qual morou mas não mora mais apesar de já ter morado e não ter gostado o que importa é que fiquei com a ideia de cidadessubterrânea na cabeça e ela me vem à mente toda vez que penso em Paris e que ando de metrô e que fico sem espaço● 

Claudio Cabral é graduando em música pela Universidade Paris VIII