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quarta-feira, 30 de abril de 2014

O Encontro das Três Águas - Breno Góes

Breno Góes é graduando em Letras pela PUC

 “Amores são águas doces
Paixões são águas salgadas
Queria que a vida fosse
Essas águas misturadas”
Roberto Mendes e Jorge Portugal

Fala-se tanto das manifestações do Rio que me surpreende ninguém ainda ter falado do Arturo, do Bruno e do Caio. Falo eu, então. Até por que os três são cariocas como eu, tem vinte e dois que nem eu e eu acabei de inventá-los.

Talvez seja uma parábola. Não sei. Arturo, Bruno e Caio vinham de três partes diferentes do Rio, e estudaram em três escolas e faculdades diferentes. Não se conheciam, os três, quando saíram de suas casas no dia 20 de junho para tomar a Presidente Vargas e se possível o poder, por conta de vinte centavos que não eram vinte centavos, mas eram, etc., etc., etc.(vocês lembram como isso foi confuso). Arturo, o primeiro, era o que já então começava-se a chamar de Black Bloc. A sua calça de couro grossa até protegeria bem das balas de borracha, mas a proteção não era completa, uma vez que a peça era rasgada na altura da coxa, à maneira dos punks. Na cabeça, o capuz do casaco e, na mochila, uma máscara de gás e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha a famigerada mistura de ácidos e gasolina necessária para fazer um Coquetel Molotov. Arturo tinha raiva do governo.

Bruno, o segundo, era um “harumaki”. Harumakis são os manifestantes que andam enroladinhos em bandeiras do brasil, à maneira do quitute tão apreciado na culinária japonesa. Bruno enrolava-se todo na sua enorme flâmula auriverde, mas deixava pra fora o cartaz no qual escrevera “ABAIXO OS PETRALHAS”, bem visível. Na cabeça, uma cartola verde e amarela que ele comprara na última copa do mundo. Na mochila, tintas (adivinhem as cores) para o rosto e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha vinagre. O vinagre, como todos sabem, ameniza os efeitos do gás lacrimogêneo. Bruno tinha raiva do governo.

Caio, o terceiro, era o que um jornalista vulgar talvez chamasse de um elo perdido de Woodstock. Eu chamaria de doidão. Como Bruno, Caio também pintara o rosto, mas de diversas cores e purpurinas. Ele não pretendia apenas protestar na passeata, mas mais do que isso queria realizar uma performance de contato corporal e troca energética com os passantes. Talvez fazer um documentário sobre isso. Na cabeça, nada além de seus louros dreadloques. Na mochila, uma câmera e uma garrafinha de água mineral na verdade contendo MDMA, a famosa anfetamina conhecida como “emedê” e mais conhecida ainda como a “droga do amor”. Mas não se iludam, Caio também tinha raiva do governo.

Encontraram-se no jardim da prefeitura, quando a primeira bomba estourou e começou a correria. Como tudo nessas horas, o encontro entre os três foi fugaz e violento: Esbarraram-se, na verdade, e foram os três ao chão. As mochilas caíram, as garrafinhas de água mineral saíram rolando e atabalhoadamente eles cataram tudo e se puseram de pé. Na confusão, mal puderam pedir-se desculpas, quanto mais dialogar e chegar à tão sonhada via intermediária que conciliaria todos os interesses da nação. Ainda por cima quis o destino, que é um fanfarrão, que as garrafinhas que eles carregavam fossem trocadas. E deu-se o que se deu:

Caio ficou com a garrafinha de Bruno. Ele planejava compartilhar o emedê com seus amigos, mas tudo o que acabou compartilhando foi vinagre. Logo, quando a chuva de bombas lacrimogêneas ficou insuportável, os amigos de Caio ficaram impressionados com os poderes paliativos do suposto emedê sobre o gás. Mais veloz do que a fumaça, se espalhou por muitas pessoas da passeata o boato dos poderes curativos da droga do “loirinho de dread”, e por alguns minutos Caio foi muitíssimo popular: todos queriam o “emedê-anti-gás”.

Bruno, por sua vez, ficou com o proto-Molotov de Arturo. Esvoaçando sua bandeira, o Harumaki rapidamente se afastou da confusão (“não gosto de vandalismo”, dizia ele), não precisou acessar o seu suposto vinagre e portanto felizmente não inalou a perigosa mistura. Contudo, isso não o eximiu de problemas: Quando ele já estava indo pra casa, subindo a Avenida Rio Branco, um PM o parou para a revista. Ele, orgulhoso em “cooperar com o bom trabalho da polícia”, abriu sua mochila, com o que o meganha imediatamente identificou o potencial artefato terrorista. Bruno acabou engrossando a lista dos muitos jovens detidos naquela noite e, até que seu advogado pudesse resolver tudo na manhã seguinte, ele foi severa e criativamente interrogado pelos canelas-pretas na penitenciária. E pior: sem fazer ideia de como entrara naquela situação. Ninguém soube muito dele depois disso, parece que mudou pra Caldas Novas e não quer conversar com ninguém, mas não é certeza.

Por fim, Arturo. O Black Bloc foi o único dos três que, quando da ocasião do esbarrão, não estava fugindo das bombas: estava correndo em direção a elas. Quando chegou mais perto do epicentro da batalha (o prédio da prefeitura) ele se ajoelhou furtivamente e preparou, ao mover o conteúdo da garrafinha plástica para uma outra de vidro, o suposto coquetel Molotov. Digo suposto por que a garrafinha que lhe coube, vamos recapitular, não continha combustível nem ácidos, e sim a mais pura e genuína droga do amor. Na escuridão e na confusão, seus olhos mascarados não deram pela óbvia diferença de cores entre os líquidos, e então ele acendeu o pavio, fez a mira... e nada. Foi uma desilusão para Arturo jogar o “molotov” na direção dos policiais e vê-lo estilhaçar-se sem explodir, deixando-os não flamejantes, mas apenas úmidos. Mas como, pensou, se preparara tudo com tanto cuidado? Obviamente aquilo era a prova de que ele não prestava enquanto guerrilheiro urbano. Arturo, desanimado, virou de costas e foi embora, sem ver a bizarra cena que criara: os cinco policiais da tropa de choque que ele acertara largando as armas, procurando-se sofregamente e trocando um sem fim de beijos saliventos e carícias extremosas entre si, em meio ao fogo, à fumaça e às lágrimas.

Arturo, Bruno e Caio nunca mais se viram. E as coisas estão como estão. Com o que eu descubro que isso não é parábola, no fim das contas, por que não tem moral. É, como já dizia o outro, “sem moralismo”.

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